quarta-feira, 11 de abril de 2012

O ser ateu

 Autor: Daniel Gontijo
Fonte: Montando o Quebra-Cabeça

Para muitas pessoas, a proposição “Eu nego a existência de deuses” pode suscitar espanto. “Como assim… você não acredita em nada?” Na verdade, parece melhor redefinir aquela proposição para “Eu creio que deuses não existem”, mesmo que isso ainda não resolva o problema em questão. Afinal, em que crê e o que faz quem não acredita em deuses? Temos uma noção básica do que creem e fazem judeus, budistas e cristãos, mas o mesmo pode não ser dito a respeito dos ateus. Pode ser tentador definir o ateísmo como a ausência de comportamentos ligados à religiosidade. Mas, se não fazer algo já é fazer alguma coisa, é a esse “fazer diferente” que precisamos nos atentar. O ateu não fica simplesmente inerte, parado em feriados religiosos, e não fica sem reação quando coisas inusitadas ou adversas acontecem. Como disse o biólogo Paul Z. Myers (2011), o ateísmo não é “um ideal platônico flutuando em um espaço virtual com nenhuma conexão com mais nada”. Crenças não fazem sentido sem que sejam associadas a comportamentos públicos, e parece razoável dizer que o ateísmo é uma crença.


Nossos comportamentos são contextualizados, e há contextos específicos em que o comportamento religioso aparece. Não: as pessoas não são ininterruptamente religiosas! O comportamento religioso aparece e desvanece conforme variam as situações. Por exemplo, somos religiosos quando, ao sermos exitosos ou ao fracassarmos, agradecemos às divindades ou nos colocamos a orar; quando beijamos estátuas que representam santos; quando procuramos nos unir, através da meditação, ao Cosmos; quando baseamos nossas ações nas prescrições de um livro considerado sagrado; e quando concebemos o mundo como um desígnio divino. Contudo, os religiosos também se envolvem em práticas seculares, isto é, em práticas em que não há o matiz religioso. Exemplos dessas atividades são estudar matemática, comer pastéis e beber Coca-Cola, fazer transações bancárias, pegar um ônibus e acompanhar jogos de futebol. Embora certas práticas sejam ocasionalmente permeadas pela fé (como quando oramos para que nosso time vença), isso não é o bastante para denominá-las religiosas.
Parece difícil a tarefa de delimitar o perfil comportamental básico de um ateu, mas acho que podemos, senão devemos, nos arriscar. Antes de fazê-lo, descreverei alguns atributos que não definem, mas que parecem acompanhar o ateísmo.
Os ateus, ao menos os que eu conheço, são pessoas razoavelmente desconfiadas. Eles estão frequentemente atentos a incoerências ou a afirmações pouco fundamentadas, carentes de evidências, e não tomam certas afirmações como verdadeiras simplesmente por terem sido proferidas por autoridades (por exemplo, por pais, professores e líderes religiosos). Essa sensibilidade costuma levar ao questionamento e a uma postura crítica. Em essência, eu diria que o ateu se comporta com base na ideia de que o outro pode estar enganado ou pode querer enganar. Mas, e como no caso dos religiosos, esse perfil não está presente em qualquer situação. Há quem possa deixar de lado o “filtro do ceticismo” ao se deparar com notícias ou artigos científicos, sobretudo quando se tratam de algo que se queira ouvir. Os ateus são, antes de tudo, humanos.
Esse tópico é um tanto polêmico, mas eu intuo (tudo bem, com base em alguns estudos científicos) que o ateísmo é regado por um bocado de inteligência. A origem do Universo e das espécies, o sentido da vida e as questões morais são alguns dos temas importantes a ser abordados secularmente pelos ateus. Não é tarefa fácil compreender satisfatoriamente o big-bang e a seleção natural, e o convívio com religiosos pode exigir dos ateus um repertório básico de lógica, psicologia e história. A sustentação adequada do ateísmo parece requerer um esforço intelectual incomum, mesmo que isso não se traduza necessariamente em uma “inteligência incomum”. Uma parcela considerável dos ateus que eu conheço valoriza o conhecimento, para não dizer a racionalidade, e se esforça para conhecer cada vez mais.


Desconfiança e esforço intelectual talvez sejam perfis comportamentais comumente encontrados entre os ateus.(1) Se, pelas circunstâncias da vida, aprendemos a desconfiar (ou a ser céticos), a nos perguntar e a investigar, há uma grande chance de nos depararmos com o ateísmo. Com efeito, o ser ateu pode ser um subproduto emergente daquelas posturas, mas que só vem a irromper em contextos em que há um apelo social por intervenções e explicações sobrenaturais sobre o mundo. Se não houvesse o comportamento religioso, talvez não faria sentido falar de comportamento ateísta. Não há religiosidade entre os demais animais, e não é por isso que os chamamos de ateus. Por isso, o ateísmo é um conjunto de posturas que se distingue pela busca de interpretações e explicações naturais para eventos que, entre os religiosos, são frequentemente interpretados e explicados pelo poder e desígnio divinos, que são sobrenaturais. O ateu pode não negar que há mistérios e eventos difíceis de ser explicados no mundo, mas não faz disso um motivo para inventar deuses. Sob um prisma moral, eu diria que saber conviver com a dúvida é uma virtude.
Ser ateu, enfim, é resistir ao ímpeto de criar ou invocar entidades superpoderosas, os deuses, para explicar ou alterar os fenômenos do mundo; em vez disso, é dar prioridade à formulação de hipóteses naturalistas, bem como a se comportar como se as coisas não fossem permeadas por forças mágicas ou divinamente caprichosas. O ateísmo não é simplesmente a ausência de crenças em divindades, mas um conjunto de crenças e posturas que fazem a diferença.

Considerações finais
Definir o que se quer dizer com “ateísmo” pode ser uma tarefa mais difícil do que parece à primeira vista. Se nos restringimos à etimologia, podemos ficar confusos quanto ao que significa aceitar ou negar a existência de deuses. Por isso, torna-se fundamental fazer menção a práticas e ideias que acompanham ou constituem certas crenças. Tal como há variações marcantes em como as pessoas aceitam a existência de deuses, decerto há variações no ser ateu. Sugeri alguns padrões de conduta que são frequentes entre os ateus que eu conheço, e tentei, com algum custo, definir em poucas palavras o que eu entendo por “ateísmo”. Não quero pensar que minhas sugestões e definição são definitivas; espero que colegas possam me ajudar a ajustá-las ao longo do tempo.
Ao final, arrisquei-me a falar sobre a páscoa e sobre como um ateu poderia lidar diante dessa ocasião. Devo ressaltar que aquele trecho não se tratou de prescrições, mas de sugestões ou possibilidades de ação que vislumbrei a partir de experiências próprias, de relatos de alguns colegas e de leituras que fiz. Ateus não precisam se posicionar a favor do aborto, do casamento homossexual e da abolição de crucifixos em repartições públicas, e não precisam necessariamente ser delicados e respeitosos para com os religiosos. Contudo, creio que a força de um grupo pode crescer na medida em que certas posturas básicas são incorporadas. Não estou certo sobre que posturas seriam essas, mas desconfio que o ceticismo e o humanismo são bons candidatos.
Você é ateu — orgulhe-se daquilo em que você acredita, e não daquilo em que você descrê. E, também, aprenda a respeitar o fato de que as pessoas com ideias contrárias às suas não chegaram a suas conclusões em um vácuo. Na verdade, há motivos mais profundos para elas endossarem tão veementemente entidades sobrenaturais, e tais razões nem sempre podem ser reduzidas à estupidez (Myers, 2011).

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