segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Como lidar com parentes e amigos teistas - o relato de uma experiência positiva.

Autor: Daniel Oliveira janela de composição de mensagem de e-mail
 Uns três anos atrás, minha mãe e minha irmã andavam muito transtornadas com minha descrença. Periodicamente, tocavam no assunto, sempre muito preocupadas comigo. Depois de algumas tentativas — frustradas — de tentar explicar-lhes pessoalmente o porquê dessa história de “não acreditar em nada”, resolvi fazer isso por escrito. Escrevi um e-mail longo, com minhas razões. Pensei que elas talvez pudessem ficar ainda mais preocupadas assim que lessem tudo, mas que o resultado, a longo prazo, seria bom. Me enganei. O resultado foi imediato e muito melhor do que eu podia esperar! Depois do e-mail, elas passaram a encarar meu ateísmo de forma muito mais natural e branda. Se não conseguem me entender completamente, pelo menos tenho certeza que depois do e-mail, conseguem me entender um pouco mais. Outro dia compartilhei esse e-mail com um amigo que estava em situação similar — pedindo conselhos de como falar com os pais sobre o assunto — e ele me encorajou a publicar pelo menos partes do e-mail. Não acho, sinceramente, que o texto seja grande coisa, mas aqui está, quase que na íntegra (removi somente alguns trechos muito pessoais), na esperança que possa ser útil a outras pessoas.


 Subject: Amor, teísmo, natureza, a vida, o Universo e tudo mais.


 Minhas queridas, Percebi, pelas últimas conversas que tivemos nos últimos dias, que vocês ainda continuam bastante preocupadas com minha descrença. E como acho que não consegui me fazer entender muito bem pessoalmente, pensei em escrever. Dá mais trabalho, mas pelo menos talvez eu tenha a chance de ser mais claro. E vocês, a chance de me entenderem melhor. Vamos ver … Na verdade, eu podia “deixar assim”, fingir que não ouvi ou fingir que concordo com a máxima de que “as pessoas precisam acreditar em alguma coisa”. Na verdade, não me importo em fazer isso de vez em quando, principalmente quando são pessoas que eu não conheço muito bem. Via de regra, não vale mesmo muito a pena o embate. “Não discutirás futebol, política e religião”, décimo primeiro mandamento. Que fique, claro, não concordo com este, entre outros :-) , mas vocês duas estão entre as pessoas que eu mais amo nessa vida, pessoas com quem eu não gostaria de precisar medir palavras pra falar de qualquer coisa, inclusive religião; pessoas que eu gostaria que me aceitassem exatamente do jeito que eu sou. Por isso, resolvi escrever. Realmente eu não acredito na existência de Deus. Pelo menos não na concepção judaico-cristã de um ser onipotente e onipresente que criou o universo, a Terra e cada um de nós, que tem domínio sobre cada elétron do Universo — vinte e quatro horas por dia — e que pessoalmente escuta preces e quebra todas as leis da Física para beneficiar seus protegidos (confessadamente não merecedores). Não é que eu não acredite no divino, só que quando penso nisso é mais como uma abstração, um conceito, do que como uma entidade, um ser. É claro que acredito em bondade, na beleza da Natureza, eu acredito que as pessoas são intrinsicamente boas, no valor da amizade, na necessidade de pautar a nossa vida não só em coisas materiais (bens, aparências) mas em valores que transcendem a matéria. Mas entendo que tudo isso é independente de uma crença em coisas sobrenaturais, milagres e divindades. Penso que a experiência humana – todo o amor e toda miséria humana – podem ser produto de bilhões de neurônios interconectados. Diferentemente dos gregos da antiguidade, vocês também não acreditam mais em um monte de deuses. Thor, Zeus, Mirra, Menta, Afrodite, Netuno e tantos outros deuses que hoje chamamos de deuses da mitologia grega, eram tão reais para os gregos quanto o Deus cristão provavelmente é para vocês hoje. Vocês são, portanto, agnósticas em relação a muitos deuses, que no passado eram considerados responsáveis pelos problemas mundanos. De certa forma, eu só sou um pouco mais agnóstico que vocês. ;-) Tem uma frase (que considero bem humorada) do Richard Dawkins que diz mais ou menos o seguinte: “a humanidade tem gradativamente caminhado do politeísmo para o monoteísmo e está chegando cada vez mais perto do número correto de deuses existentes”. Brincadeiras a parte, queria explicar-lhes por que eu não acredito mais no sobrenatural. Por acaso, “briguei” com Deus? Será que sou ingrato e não reconheço as coisas boas que aconteceram e têm acontecido na minha vida? Juro (eu poderia dizer “por Deus”, mas não queria soar irônico) que não é isso. Por um lado, o que aconteceu foi justamente o contrário. Eu fiz as pazes com a Natureza! Eu passei a aceitar e enxergar o mundo real (no meu entendimento) com uma beleza que eu jamais tinha percebido. Sempre tive muita dificuldade de entender o funcionamento de um mundo tão cheio de injustiças, supostamente governado por um ser infinitamente bom, onipotente, onisciente e onipresente. “Por que Ele permite tanta morte, tantas coisas erradas e tanta injustiça se é onipotente?” eu pensava. “Ou não é onipotente ou não é onipresente e onisciente”. (O eterno dilema de Tomás de Aquino). Ah, mas se existir reencarnação então tudo se resolve, tudo faz sentido. É uma ideia comovente, mas as evidências são pífias. Pois, ao invés de culpar deus, ou pessoas que rezaram pouco, ou o diabo, os espíritos maus, ou o Flying Spaghetthi Monster pelos problemas mundanos, eu prefiro tentar entendê-los de forma natural. E ao invés de me emocionar com rituais, eu agora me emociono com as estrelas, com arte, com ciência, com poesia, com as pessoas. Pode ser que eu esteja errado e as pessoas que acreditam nessa concepção de deus , certas — e não descarto isso — mas todo o meu raciocínio, a soma de todos os livros que eu li até hoje e de tudo o que eu busquei e estudei aponta para isso. Eu juro que considero (embora, devo confessar, cada vez menos) que a outra possibilidade (que Deus exista) possa ser válida, mas minha razão aponta para o contrário – para um universo não determinístico, não controlado por nenhuma entidade – e chegou uma hora que ignorar isso começou a me fazer mal. As coisas simplesmente fazem mais sentido pra mim desta forma, são mais lógicas, parecem mais verdadeiras para o meu cérebro (notadamente imperfeito). Mas vejam que eu não argumento que estou certo e vocês erradas. Não, apenas sustento que eu posso estar certo. Não me esforço para convencer pessoas do contrário (quando perguntado até digo minha opinião, mas procuro não proselitizar) e só queria que pelo menos as pessoas mais próximas a mim ao menos tentassem não me encarar como um excêntrico ou como uma pessoa ruim por causa do que eu penso sobre questões metafísicas. Estou em paz, acreditem. Não me sinto sozinho, como muitas pessoas dizem se sentir quando “se afastaram” de Deus. Eu não. Estou com uma paz de espírito (metaforicamente, por falta de palavras mais precisas) e com uma calma que eu não sei se alguma outra vez na vida eu já tive. Parei de tentar encontrar sentido no caos e passei a enxergar a verdadeira beleza da Natureza. Pra mim, isso foi muito bonito, foi libertador. Ao invés de conceitos verdadeiramente bizarros como “merecimento” e “pecado original”, agora acredito na Natureza, na grandiosidade do Universo, que coisas boas e ruins, aleatoriamente, simplesmente acontecem. Ao invés de acreditar na vida após a morte, passei a encarar essa vida como uma coisa frágil e preciosa — um lampejo, uma fagulha, a coisa mais preciosa do mundo — mas ao mesmo tempo finita, curtíssima. Não dá pra desperdiçar um minuto com futilidades, com o Big Brother, com falar mal da vida alheia, com infantilidades … tenho mais 20, 40, 50 talvez 60, anos pela frente? É muito pouco! Mas eu vou tentar aproveitá-los com sabedoria e com deleite, do melhor jeito que eu puder. Cada segundo! E se eu estiver errado? Será que não vou queimar no inferno, então? A aposta de Pascal não é uma aposta muito alta a fazer? Se a minha hipótese da não existência de Deus estiver errada, creio que ainda assim existe muita chance de que Ele venha a me perdoar. Afinal, nesse caso, minha ignorância e teimosia são subprodutos da inteligência que Ele me deu. Sem falar que, com exceção de “amar a Deus sobre todas as coisas” (e outras pirações do V.T.), eu compartilho de muitos dos valores ditos cristãos. Penso que bondade, generosidade, companheirismo, respeito, honestidade e tantas outras chamadas virtudes “cristãs” estão embutidas na maioria de nós, são características intrinsicamente humanas. Tento levar uma vida próxima dos supostos ensinamentos cristãos — tento não prejudicar as pessoas, tento levar uma vida digna, honesta, trabalho duro, amo minha família, não desejo mal a ninguém – não é tão mal assim, vejam. Vocês podem achar que não é possível ser bom e virtuoso sem acreditar em Deus, mas cada dia acho mais possível. Pra mim, posso dizer, é possível sim. Acredito que podemos derivar nossa moral da razão, ao invés de escrituras. E, derivando-a da razão, acho que podemos ter uma moral muito melhor do que a ensinada nas parábolas do novo e velho testamentos! Uma moral que não provoque tantos casos de pedofilia entre membros do clero (pra mim, um reflexo claro da repressão sexual e de uma obsessão pelo sexo, ou falta de sexo), uma moral que evite milhares de mortes na África ao invés de publicamente desaconselhar a utilização de preservativos (e, de novo, garantir um celibato utópico), uma moral que permita a pesquisa com células tronco (ao invés de a condená-la por entender que utilizar uma célula embrionária para produzir tecidos orgânicos é “assassinato“), uma moral que não dê mais valor para um punhado de células do que para pessoas inteiras em sofrimento ao condenar indiscriminadamente o aborto, uma moral que não seja contra a doação de sangue e órgãos (porque um dia, aparentemente, escreveram “não deveis comer nenhum sangue” em um livro alegadamente sagrado), uma moral que respeite os homossexuais (sem considerá-los doentes e sujos), uma moral que valorize a mulher e não a trate como objeto submisso, apêndice do homem. Mas então eu agora sou um materialista desgraçado que só pensa em dinheiro e que não tem qualquer preocupação moral, que acha bonito matar, roubar, etc.? Claro que não. Em verdade, modéstia à parte, eu acho que eu sou até muito menos “materialista” (na conotação de se importar demasiadamente com bens materiais), menos individualista e mais preocupado com minha conduta (incluindo ética) do que muitos religiosos que conheço. Acredito que não precisamos de escrituras, nem de acreditar no sobrenatural, para sermos pessoas bacanas. Eu, pelo menos, acho que não preciso. E acredito que temos que fazer as coisas porque racionalmente acreditamos que é o melhor para nós e para o planeta, não só porque está escrito em algum lugar ou porque alguma figura importante no cenário político ou religioso acha que isso é o melhor pra gente. E como não acredito mais em vida após a morte, em espíritos, em bioenergias, em demônio(s), eu também não tenho medo de ambientes “pesados”, do escuro, da morte, de maldições, de agouros. Vocês podem achar, por exemplo, que foi só graças a intervenção de deus que coisas boas aconteceram na minha vida – “graças a Deus, seu filho sobreviveu”. Mas sem entrar no mérito de quantos cientistas foram queimados na fogueira por defenderem convicções “subversivas” como as de que as doenças eram causadas por germes e baixas condições de higiene e não por forças sobrenaturais, eu queria lembrar que se eu fosse um praticante fervoroso de qualquer religião, muito provavelmente eu teria rezado, pedido forças para o além e mantido um casamento infeliz para não fazer nada em desacordo com a vontade do criador. Aí sim, talvez, vocês não tivessem netos ou sobrinhos. Não descarto a possibilidade (embora confesse que a ache bastante improvável, difícil de entender com o meu cérebro limitado) de que foram as orações de vocês e de tantas outras pessoas queridas que fizeram tudo dar certo, mas penso que minha subversão à religião tradicional também foi importante. Quantas vidas foram e têm sido destroçadas por uma ideologia que prega que, “aos olhos de deus, casamentos (independentemente da qualidade) são eternos”? Reconheço o papel de suporte emocional que a religião teve/tem para algumas pessoas e da sua utilidade para organizar a nossa sociedade, mas da mesma forma que os exorcismos e enforcamentos de bruxas da Idade Média não tem mais lugar no século XX (muitas pentecostais não contam, ainda estão no século XIII :>), eu acredito que a religião não deveria ter tanto lugar no século XXI. Nos 45 piores dias da minha vida — quando estávamos na pedreira na UTI Neonatal — recebi o apoio e me emocionei com o carinho de muita gente (desnecessário dizer que o de vocês, principalmente) mas ao invés de buscar explicações — muita gente lá se perguntava incorformada “por que isso foi acontecer comigo, justo comigo, meu Deus?!” — eu me resignava com um universo aleatório, onde nós simplesmente não controlamos todas as variáveis, e tentava me acalmar, curtir os momentos legais e ficar forte para aguentar os ruins. Ao invés de rezar, eu estudava neonatologia (para poder falar com os médicos com algum entendimento do que estava acontecendo), eu investia cada segundo livre para estar lá e ajudar no que fosse possível. Como eu disse, eu aceito e respeito que pessoas possam pensar diferente de mim. Mas como considero que teístas podem estar certos e eu errado, não tenho problema nenhum com pessoas dizendo que estão rezando por mim ou quando me desejam que eu “fique com Deus”. Entendo tudo isso como demonstrações de carinho. Só gostaria que, reciprocamente, as pessoas — principalmente as que eu amo — não me enxergassem como vazio, intrinsicamente mau ou repulsivo e nem se preocupassem (ou perdessem o sono, sofressem) com a minha salvação (ou danação, como queiram). Queria que, da mesma forma que eu considero que posso estar errado e os outros certos, que as pessoas pudessem conceber, pelo menos hipoteticamente, que eu possa não estar totalmente errado. Mas é isso, minhas queridas. Queria dizer isso pra vocês e explicar que estou bem. Por favor, acreditem que eu estou bem mesmo, que muito, muito, muito provavelmente, não irei queimar no inferno. ;-) Acreditem também que amo vocês, mais do que nunca. Imaginar que o amor é um fenômeno causado pelo cérebro não tira de mim a contemplação subjetiva da beleza desse sentimento. Para mim, o amor é tão real quanto enxergar um dia de primavera. E fiquem com Deus, seja lá o que isso signifique pra vocês. A propósito, quando alguém fala isso pra mim, eu entendo como “fique em paz, fique com todo o amor do mundo, receba minha gratidão e generosidade, etc.”. Sempre que possível – no caso de vocês, por exemplo – eu tenho preferido me despedir de modo mais simples, verdadeiro e direto, tipo assim … eu amo vocês. Beijos e saudades,


 Daniel Direto do Bule Voador !!!

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