sábado, 10 de março de 2012

TJ-RS e a defesa da laicidade do Estado

Autor: Alex Rodrigues
Resguardar o espaço público do Judiciário para o uso somente de símbolos oficiais do Estado é o único caminho que responde aos princípios constitucionais republicanos de um estado laico, devendo ser vedada a manutenção dos crucifixos e outros símbolos religiosos em ambientes públicos dos prédios”
As sábias palavras acima foram proferidas pelo Desembargador Cláudio Baldino Maciel, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), relator da matéria que julgou nesta terça-feira, 06/03/2012, procedente o pedido da Liga Brasileira de Lésbicas e de outras entidades sociais sobre a retirada dos crucifixos e símbolos religiosos nos espaços públicos dos prédios da Justiça gaúcha. Por incrível que pareça, a decisão foi unânime.
O Desembargador afirmou ainda que julgamentos feitos em um tribunal sob um expressivo símbolo de uma religião e sua doutrina não parece ser a melhor forma de se mostrar o Estado-juiz equidistante de valores em conflito.
Em um texto do Idelber Avelar publicado na Revista Fórum, são compartilhados outros trechos do voto tão sábios quanto aquele logo acima. Seguem abaixo:
Sobre o caráter laico do Estado:
Ora, o Estado não tem religião. É laico. Assim sendo, independentemente do credo ou da crença pessoal do administrador, o espaço das salas de sessões ou audiências, corredores e saguões de prédios do Poder Judiciário não podem ostentar quaisquer símbolos religiosos, já que qualquer um deles representa nada mais do que a crença de uma parcela da sociedade (…).
O cidadão judeu, o muçulmano, o ateu, ou seja, o não cristão, é tão brasileiro e detentor de direitos quanto os cristãos. Tem ele o mesmo direito constitucionalmente assegurado de não se sentir discriminado pela ostentação, em local estatal e por determinação do administrador público, de expressivo símbolo de uma outra religião, ainda que majoritária, que não é a sua.
Sobre a diferença entre a possível crença individual de algum desembargador e o espaço impessoal da sala de reuniões:
Nada impede que um magistrado, no interior de seu gabinete de trabalho, faça afixar na parede um símbolo religioso ou uma fotografia de Che Guevara.
No entanto, à luz da Constituição, na sala de sessões de um tribunal, na sala de audiências de um foro, nos corredores de um prédio do Judiciário mostra-se ainda mais indevida a presença de um crucifixo (ou uma estrela de Davi do judaísmo, ou a Lua Crescente e Estrela do Islamismo) do que uma grande bandeira de um clube de futebol.
Isto porque, ao passo em que a presença da bandeira de um clube de futebol na sala de sessões de um tribunal não fere o princípio da laicidade do Estado (ao contrário da presença da presença do crucifixo, que fere tal princípio), a presença de qualquer deles – bandeira de clube ou crucifixo – em espaços públicos do Judiciário fere o elementar princípio constitucional da impessoalidade no exercício da administração pública.
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Sobre a utilização do preâmbulo da CF para justificar a presença de símbolos religiosos em prédios públicos:
É verdade que, conquanto laico o Estado brasileiro, paradoxalmente o preâmbulo da Constituição Federal invoca a menção a Deus, o que tem sido um argumento utilizado para justificar certa presença religiosa em instituições públicas.
É atualmente pacífico na jurisprudência constitucional, contudo, o entendimento de que o preâmbulo da Constituição não possui força normativa. O Ministro Sepúlveda Pertence, no julgamento da ADI nº. 2076-5, referiu ironicamente em seu voto:
“Esta locução ‘sob a proteção de Deus’ não é norma jurídica, até porque não se teria a pretensão de criar obrigações para a divindade invocada. Ela é uma afirmação de fato jactansiosa e pretensiosa, talvez, de que a divindade estivesse preocupada com a Constituição do país”.
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Sobre o argumento de que a “tradição” brasileira é majoritariamente cristã e que isso justificaria a presença dos crucifixos nos Tribunais de Justiça:
[...] absolutamente não é papel do Judiciário legitimar acriticamente qualquer tradição social, especialmente se excludente ou inconstitucional. Já não se discute, na atualidade, o legítimo papel do Direito que se opõe à ideia de meramente afirmar práticas hegemônicas da maioria social, mesmo que contrárias ao texto constitucional. Ademais, o princípio democrático contramajoritário justificaria plenamente a defesa de eventuais minorias quanto ao abuso das práticas religiosas da maioria, especialmente as de raiz inconstitucional.
O nepotismo, por exemplo, foi uma prática tradicional no Brasil. Tradicionalmente houve uma certa promiscuidade entre o público e o privado. Não obstante, está sendo superado o nepotismo porque sobre tal “tradição” o Judiciário, devidamente provocado, teve uma abordagem crítica que considerou tal prática inconstitucional exatamente por violar, de igual modo, o princípio da impessoalidade na administração pública.
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Sobre o argumento de que o crucifixo não é um símbolo que exclua ninguém:
Há quem refira, como defesa possível de sua tese, o caráter não-religioso do crucifixo. Sem razão, contudo. É evidente que o símbolo do crucifixo remete imediatamente ao Cristianismo, consistindo em sua imagem mais evidente.
A Corte Constitucional alemã, refutando o argumento de que o crucifixo é mero enfeito que deveria ser tolerado em ambiente estatal por força da tradição, dispôs:
“A cruz representa, como desde sempre, um símbolo religioso específico do Cristianismo. Ela é exatamente seu símbolo por excelência. Para os fiéis cristãos, a cruz é, por isso, de modos diversos, objeto de reverência e de devoção. A decoração de uma construção ou de uma sala com uma cruz é entendida até hoje como alta confissão do proprietário para com a fé cristã. Para os não cristãos ou ateus, a cruz se torna, justamente em razão de seu significado, que o Cristianismo lhe deu e que teve durante a história, a expressão simbólica de determinadas convicções religiosas e o símbolo de sua propagação missionária. Seria uma profanação da cruz, contrária ao auto-entendimento do Cristianismo e das igrejas cristãs, se se quisesse nela enxergar, como as decisões impugnadas, somente uma expressão da tradição ocidental ou como símbolo de culto sem específica referência religiosa.”[7]
Vê-se, assim, que a questão ora analisada não é prosaica ou simples, já que não se trata de julgar forma de decoração ou preferência estética em ambientes de prédios do Poder Judiciário, senão de dispor sobre a importante forma de relação entre Estado e Religião num país constituído como república democrática e laica.

Direto do Bule Voador

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