sexta-feira, 16 de março de 2012

Autor: Eli Vieira

Há poucas horas assisti ao vídeo de denúncia ao Joseph Kony, suposto sequestrador de crianças que faz um exército delas em Uganda para perseguir metas políticas ou pessoais. O problema do vídeo é que ele não explica que metas são essas, até Hitler, que sim, apareceu no vídeo, fez o que fez com alguma motivação que ultrapassa as habilidades de Gavin, estrela do documentário de meia hora e o filho do criador do vídeo, de compreender porque “gente malvada faz coisa ruim”.
Postei o vídeo aqui no Bule, na esperança de atrair comentaristas mais informados no assunto, e presumindo a boa fé do criador do vídeo e de toda a campanha por trás dele. O primeiro leitor a manifestar no Twitter alguma preocupação com o Bule Voador dar voz à campanha foi o músico Tico Santa Cruz. Ele escreveu na página dele no Facebook uma série de perguntas mal respondidas no vídeo, ou não respondidas mesmo. Você pode ler as críticas dele aqui.
Então, para responder a algumas dessas objeções, me vi na obrigação de pesquisar mais a fundo. De fato, como informa o português Jornal de Notícias, a campanha exagera a importância da guerrilha de Kony, o “Exército de Resistência do Senhor”, que tem sido enfraquecida em tempos recentes sem precisar de vídeos cheios de clichê de edição e apelo emocional no YouTube.
A melhor peça sobre o assunto que achei até agora foi no Independent, e foi escrita por Musa Okwonga, ugandês da tribo Acholi, do norte do país, exatamente a região em que Kony cometeu seus crimes. Traduzo os últimos parágrafos do texto do Okwonga:
“Entendo a raiva e o ressentimento com a abordagem da Invisible Children, que com seu paternalismo tem ecos desagradáveis de colonialismo. Admito que me perturbei com sua prescrição e cima para baixo, quando tanto trabalho diligente já está sendo feito na Uganda Setentrional. Por outro lado, eu me alegro muito – fico mais aliviado que tudo – que a Invisible Children tenha atingido conscientização global sobre esse assunto. Assassinos e torturadores tendem a preferir o anonimato, e se não isso a respeitabilidade: desse modo, eles podem se safar sem limites. Por muitos anos, o assunto desse TT no Twitter era algo que eu apenas tinha ouvido falar na sala de estar dos meus avós, quando parentes e amigos da família se juntavam para horas infrutíferas e frustrantes de discussão. Mas assistindo ao vídeo, me preocupei com o simplismo da abordagem da Invisible Children.
O que importa é que Joseph Kony tem feito isso por muito, muito, muito tempo. Ele emergiu há cerca de um quarto de século, mais ou menos quando o presidente de Uganda, Yoweri Museveni, veio ao poder. Como resultado, os destinos desses dois líderes devem, eu penso ser vistos em conjunto. Ainda, embora o presidente Museveni deva integrar qualquer solução a esse problema, e não ouvi uma só menção a ele no vídeo de 30 minutos. Pensei que essa foi a omissão crucial. A Invisible Children pediu a seus espectadores para procurar o engajamento de políticos e celebridades americanas, mas – e isso é um grande cartão vermelho – não lhes apresentou os muitos Ugandeses do norte que já fazem um trabalho fantástico tanto em suas comunidades quanto na diáspora. Não pediu a seus espectadores para procurar pressão diplomática sobre a administração do presidente Museveni.
Dez minutos depois do começo do vídeo, o narrador pergunta a seu pequeno filho quem é o “cara malvado” em Uganda; quando seu filho hesita, ele o informa que Joseph Kony é o cara mau. De certa forma, até pegou leve com Kony: ele é um monstro. Mas o que o narrador também deixou de fazer é mencionar para seu filho que quando um cara mau como Kony está liderando guerrilha por anos a fio, estuprando e surrando e sequestrando e executando, então há provavelmente outro tipo de caras maus por lá deixando-o fazer isso. Provavelmente deveria ter dito a seu filho isso também.
Eu não acho que a Invisible Children é ingênua. Eu não acho que o presidente Obama esteve cego sobre este assunto também: seu próprio pai, um queniano, vem dos Luo, o mesmo grupo tribal que sofreu tanto nas mãos de Kony. Meu palpite – e esperança – é que eles vêem essa campanha como um modo de encorajar questões mais amplas e mais profundas sobre a governância largamente inadequada dessa área da África.
Até onde o presidente Museveni vem ao caso, meus pensamentos são esses: se milhares de crianças britânicas fossem sequestradas de suas cidades a cada ano e recrutadas para um exército, pode apostar que David Cameron estaria enfrentando problemas muitos sérios na [Câmara] dos Comuns. Pode apostar que ele seria sabatinado sobre por que, anos depois do início do conflito, ainda haveria cerca de um milhão de seus cidadãos morrendo lentamente na miséria em campos decrépitos de refugiados. Pode apostar também que, depois de mais de 20 anos disso acontecendo debaixo do nariz dele, ele não estaria governando o país até hoje.”
A LiHS já participou de dois eventos sobre direitos humanos no mundo: o protesto de 100 cidades contra o apedrejamento, quando os filhos de Sakineh Mohammadi Ashtiani convocaram o mundo a salvar sua mãe das garras da teocracia islâmica de Ahmadinejad; e na maratona de cartas da Anistia Internacional. Depois de aprender mais sobre Joseph Kony e Uganda, ainda tenho vontade de participar. Não daria, é claro, nem um centavo à Invisible Children, por ser ingênua em sua abordagem. Mas estou feliz de ter divulgado o vídeo e agora saber quem Kony é.
Analogamente, não me arrependo de ter divulgado no Bule Voador aquele vídeo também cheio de clichês e bobagens de “abraçadores de árvore” sobre Belo Monte. Serviu para o Pirulla fazer a excelente e informativa resposta dele, que deixou claro que sim, aquela coisa de Belo Monte ser um problema é verdade.
Mas, vejam, eu não daria dinheiro à Invisible Children pelo motivo que já dei, e não por um dos motivos dados pelo Tico Santa Cruz:
“Duvidar de tudo que vem dos americanos é um dever de todos.”
Isso não é dever, isso é um antiamericanismo bobo e dogmático, com todo respeito ao Tico, que eu sinceramente admiro vendo que está disposto a usar da visibilidade que tem para crescer o senso crítico de quem o segue no Twitter.
Quando aconteceu o ataque do 11 de setembro, eu tinha 14 anos. A primeira coisa que eu fiz na frente da TV com meu pai foi comemorar. Meu pai ficou quieto. Eu cresci num ambiente de desconfiança automática e dogmática a tudo que venha dos Estados Unidos, e este é um momento da minha vida do qual eu me arrependo amargamente. Felizmente, a tolice de comemorar o ataque durou menos de 30 segundos. Bastou eu olhar para a cara do meu pai para ver que eu estava fazendo uma besteira muito grande. 30 segundos de besteira, uma memória para toda vida. E os 30 minutos do vídeo da Invisible Children?
P. S. O Tico Santa Cruz se sentiu mal interpretado e disse que não é anti-americano. Ele explicou que a intenção da frase era uma espécie de chamado ao ceticismo.  Neste caso me desculpo pela má interpretação da frase acima.


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