sexta-feira, 11 de junho de 2010

Nietzsche revisitado: A síntese de “O Anticristo”

E desde então surgiu um problema absurdo: “Como Deus pode consentir nisto?” A razão perturbada da pequena comunidade achou uma resposta de um absurdo verdadeiramente terrível: Deus deu o seu filho para o perdão dos pecados, em sacrifício. Ah! Como terminou de uma assentada o Evangelho! O sacrifício expiatório na sua forma mais desprezível, mais bárbara, o sacrifício dos inocentes pelas faltas dos pecadores! Que espantoso paganismo! Não tinha Jesus suprimido até a idéia do pecado? Não havia negado o abismo entre Deus e o homem, vivido essa unidade entre Deus e o homem, que era a sua boa nova?… E isto não era para ele um privilégio! Desde então se introduz a pouco e pouco no tipo do Salvador a doutrina do “juízo” e da vinda, a doutrina da morte por sacrifico, a doutrina da ressurreição que escamoteia toda a idéia de salvação, toda a só e única realidade do Evangelho a favor de um estado depois da morte… Paulo tornou lógica essa concepção — concepção descarada! — com aquela insolência rabínica que o caracteriza em todas as coisas: “Se Cristo não ressuscitou dentre os mortos, é vã a nossa fé”. E de um só golpe converte-se o Evangelho na promessa irrealizável mais digna de desprezo, a doutrina insolente da imortalidade pessoal… O próprio Paulo a ensinava ainda, como uma recompensa!…
Friedrich W. Nietzsche, O Anticristo, Capítulo 41
No capítulo destacado acima de O Anticristo, Nietzsche nos apresenta o que pode ser a síntese de sua crítica ao cristianismo. O filósofo aponta a morte do Cristo como o momento que decide o destino do Evangelho, quando, nas palavras do autor, a boa nova foi seguida de perto pela pior de todas — a de Paulo.
A tese é que a crucificação de Jesus de Nazaré colocou seus seguidores diante de um dilema: O mestre morreu. Qual o significado de sua morte? Uma solução seria os seguidores darem conotação heróica à morte de seu Messias, já que o herói conhece o triunfo em vida e a glória na morte. Mas, para Nietzsche, não havia como identificar a morte do Cristo com a morte do herói, pois para ele a noção do herói é essencialmente antievangélica.
Até a sua morte, Jesus de Nazaré foi um pregador rejeitado pelos judeus e um líder popular que nada conseguiu contra o poder romano. Na religião e na política não triunfou em vida. Preso sem resistência, vendo o povo se voltar contra ele e seus seguidores mais próximos fugirem apavorados, terminou executado de modo humilhante. Sem triunfo e glória, o cristianismo corria o risco de perecer no berço.
É aí que surgem as doutrinas do sacrifício vicário, da ressurreição, do segundo advento e do juízo.
Tais doutrinas criaram a fé de que a morte na cruz foi o triunfo de uma missão divina destinada a remir os pecados humanos visando à glória de Deus. O triunfo e a glória que não foram testemunhados factualmente são definidos espiritualmente e só se mostrariam em sua plenitude no fim dos tempos.
É contra isto que Nietzsche se enfurece.
Ao contrário do que muitos possam pensar, em nenhum trecho de O Anticristo encontramos uma declaração de repulsa ao Evangelho em si. O filósofo renega o que chama de “conversão do Evangelho na mais desprezível e irrealizável das promessas, a petulante doutrina da imortalidade do indivíduo”, pois para ele “a boa nova não se manifesta através de milagres, recompensas, promessas ou escrituras. É, do principio ao fim, seu próprio milagre, sua própria recompensa, sua própria promessa, seu próprio reino de Deus”.
Nietzsche vê na origem do cristianismo um movimento de características budistas, que promete a tranqüilidade e felicidade na terra. Este movimento conduzido por Jesus de Nazaré em vida, teria findado com a morte na cruz, sendo substituído por outro movimento instituído em torno dos novos significados dados a esta morte — é este o cristianismo que o filósofo rejeita e critica.
Visto desta forma, O Anticristo deveria chamar-se “O Ante-Paulo”, já que é ao apóstolo de Tarso que Nietzsche dirige suas mais duras críticas, tendo-o como expressão do sangue de teólogo que despreza e representação do instinto de sacerdote que odeia. Paulo é mostrado como um falsário que rejeita a proposta primitiva do Evangelho de felicidade real nesta vida, a substituindo por uma felicidade prometida para uma outra vida (e ainda assim vinculada a condições), transformando o cristianismo em uma “religião que promete tudo, mas não cumpre nada”.
Para Nietzsche, as conseqüências deste falseamento conduzido por Paulo seriam posteriormente estendidas à própria História, uma vez que o cristianismo dele oriundo reivindicaria primeiro o passado judaico, e posteriormente toda a história pregressa da humanidade, como uma pré-história do cristianismo.
O filósofo neste ponto se omite de reconhecer que nossa percepção da História, como hoje a temos, surge justamente da necessidade de o pensamento cristão assentar-se em um contínuo temporal de eventos que se inicia na eternidade e se finda nela, da criação ao fim dos tempos.
É sobre este assentamento histórico que o cristianismo elevou a morte na cruz da condição de encerramento inglório de uma vida sem triunfo, para cumprimento de uma promessa feita no início dos tempos, o Messias judaico que triunfa na redenção e profetiza a vindoura glória eterna. Ou seja, passado, presente e futuro foram combinados para dar sentido a um acontecimento que dentro de sua contemporaneidade era completamente desprovido dele.
Este sentido histórico do cristianismo, segundo o filósofo, transferiu o centro de gravidade da vida, dela própria (o aqui, agora, o real, o instinto) para um além indefinido (no espaço, no tempo, na vontade) que na prática representa o mesmo que trocar a vida pelo nada.
É obviamente temeroso tratar um pensamento de ruptura com toda a tradição filosófica ocidental, como o é o pensamento de Nietzsche, em aventuras diletantes como este brevíssimo resumo. Assim como é temeroso mergulhar de cabeça em sua visão de mundo e correr o risco de se deixar seduzir pela transmutação de todos os valores que pregava, sem estar preparado para as terríveis conseqüências possíveis.
Mas não podemos deixar de louvar a coragem deste pensamento que ousou proclamar para uma civilização ocidental moldada pelas doutrinas de Paulo que no fundo só existiu um cristão, e ele morreu na cruz.

Copiado de AteusdoBrasil.com.br

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