sexta-feira, 8 de junho de 2012

Neoateísmo e os erros mais comuns

Autor: Robson Fernando de Souza
Fonte: Consciencia.blog.br
Editor: Alex Rodrigues


Pode-se perceber que, desde o ano passado, vem crescendo enormemente, ao menos no Brasil, o movimento ateísta na internet, que ora luta pelo respeito aos direitos e à dignidade dos ateus por parte da parcela teísta da sociedade, ora se investe em criticar as religiões em seus fundamentos filosóficos, morais e práticos. Mas uma parcela notável dessa militância tem se enveredado num caminho, baseado no vale-tudo para desqualificar as crenças das pessoas, que é justamente contraproducente a esses dois propósitos.
Os ateus cobram respeito ao restante da sociedade, mas parte significativa deles está fazendo muito para desmerecê-lo. Críticas difamatórias, reducionistas e falaciosas às religiões em geral; ataques preconceituosos às mesmas e mesmo blasfêmias gratuitas injustificáveis acabam desmoralizando a categoria ateísta e deslegitimando o propósito do estabelecimento de uma cultura de respeito mútuo às diferenças.
É perceptível, aliás, que muitos descrentes querem não estabelecer essa cultura tolerante, mas sim transformar toda as pessoas em ateus e ateias e tornar as religiões algo pertencente ao passado. São os chamados neoateus, que investem boa parte de suas horas de internet para dirigir críticas, muitas delas bastante pesadas, às crenças religiosas em geral.
Muitas dessas críticas são válidas quando questionam, por exemplo, versículos moralmente questionáveis da Bíblia e do Corão e repudiam as tantas violências e ameaças de retrocesso ético perpetradas ao longo dos séculos e na atualidade em nome do Deus monoteísta. Mas perdem a razão quando passam a usar de reducionismos e falácias para desqualificar todas as religiões.
Esses vícios argumentativos são bem visíveis naquelas imagens-panfleto, compartilhadas no Facebook, que tentam estabelecer dicotomias entre religião (genericamente falando) e ateísmo; mundo com religiões e mundo sem religiões; religião e ciência; etc. Diversas dessas figuras já foram criticadas no Consciencia.blog.br.
Comete-se ali a falácia dupla de inversão do acidente e generalização apressada, ao tornar todas as religiões – incluídas também as vertentes liberais das religiões abraâmicas, as religiões-filosofias orientais de caminho, as tão diversificadas religiões pagãs e neopagãs, as crenças monoteístas não abraâmicas (como a Fé Bahá’i, o sikhismo e o espiritismo), as crenças espirituais autóctones (o que inclui espiritualismos indígenas e as religiões populares chinesa e africanas), o xamanismo, o animismo e os sincretismos – exatamente similares às correntes fundamentalistas cristãs, judaicas e islâmicas.
Além disso, são cometidos erros crassos de História e Sociologia, ao se insistir em reproduzir as já refutadas crenças iluministas de que a Idade Média teria sido uma “Idade das Trevas” de completa estagnação científica e tecnológica na Europa e que a substituição completa da religiosidade e da espiritualidade pela Razão e pela Ciência traria felicidade e progresso à humanidade; ignorar que o Império Islâmico medieval vivenciou importantes avanços científicos e protegeu obras filosóficas da Europa Antiga; omitir que as religiões em geral continuam tendo uma importância filosófica – tendo destaque as religiões orientais de dharma –; generalizar àquela religião em todas as suas denominações o fundamentalismo de apenas uma porção de suas vertentes; passar adiante a mentira de que a ciência e sabedoria antigas teriam sido totalmente destruídas na Idade Média europeia; entre tantos outros erros.
E isso sem falar na total falta de senso antropológico por parte de grande porção dos neoateus, ao não reconhecerem as importâncias gnosiológicas das religiões – que existem em campos do conhecimento humano diferentes da Ciência e da Engenharia, como a Cultura, a Mitologia e parte da Psicologia e da Filosofia – e não tentarem entender por que as pessoas continuam religiosas e apegadas aos velhos folclores – ou mesmo aderem a outras religiões depois de se desiludirem com aquelas de onde vieram – apesar de todos os avanços da Ciência, do secularismo e da expansão da literatura racionalista.

O deus hindu Ganesha é desrespeitado ao ser comparado a uma aberração genética. Imagem reproduzida do Facebook, de autoria anônima.
E um outro ponto muito grave da militância neoateísta que se tem observado é a recorrência aos puros insultos e blasfêmias, tratando as religiões em geral como puros rejeitos ideológicos, escarnecendo de figuras de deuses e santos, substituindo o nome de Deus por de personagens de desenhos animados (mais notadamente Goku, da franquia japonesa Dragon Ball), entre outras evidentes ofensas.
Afirmam os integrantes dessa modalidade de militância ateísta: “Respeitamos pessoas, e não crenças”. Essa frase faz sentido quando a intenção do indivíduo ou do movimento como um todo é criticar as “verdades” trazidas pelas religiões, ainda mais aquelas que conflitam com o nosso contexto ético-moral, e negá-las enquanto dogmas que não deveriam ser questionados. Mas perde a razão quando é usada no propósito do achincalhamento gratuito das crenças.
Queiram ou não os ateus, as pessoas afetadas quando, por exemplo, veem a figura de Jesus escarnecida acreditam na(s) divindade(s) profanada(s). E isso ofende não tanto a elas próprias, mas, em sua mentalidade, à(s) divindade(s) ofendida(s). E ofender uma divindade lhes é ainda pior do que desrespeitar a própria família delas. Mas isso acaba não passando pela cabeça daqueles que insistem em comparar Jesus a Goku ou chamar Ganesha de aberração genética. Porque não tentam entender a lógica de pensamento dos religiosos.
Tamanha agressividade parece ser o revide a décadas ou mesmo séculos de perseguição religiosa. Pensam os ateus militantes: se os religiosos em sua maioria passaram esse tempo todo nos desrespeitando, eles merecem levar o troco. Parte-se para uma política de vingança, para, numa catarse coletiva, descontar tudo o que foi sofrido ao longo de anos de discriminação.
Esse comportamento, porém, é bastante irracional e deletério se percebermos que ele se baseia mais numa sede vingativa; numa visão, como visto acima, enviesada e preconceituosa das religiões e/ou na intenção de tornar a população nacional totalmente ateia do que no próprio propósito de tornar os ateus uma categoria plenamente aceita pelo restante da sociedade.
O meio ateísta deveria refletir sobre essas ações. Elas estão mais prejudicando do que fortalecendo a reputação dos ateus. E tendem a substituir os velhos motivos de preconceito – que seríamos depressivos, amorais, tendentes ao crime e de vida vazia – por novos – que os ateus seriam odiadores de religiões e intolerantes contra as crenças das pessoas, desejariam a destruição de todos os sistemas de crença espiritual e costumariam recorrer à mentira e à blasfêmia para desqualificar as religiões.
E tudo o que os ateus menos querem é continuar sendo vítimas de preconceito e discriminação e o serem por ainda mais motivos do que os atuais. Se realmente têm o combate à ateofobia, ao invés da conversão generalizada das pessoas ao ateísmo, como prioridade, terão que rever suas práticas relativas a falar de religiões e deuses.

Nessa imagem, que tem autoria mas ela foi apagada para impessoalizar minha crítica, diversas religiões são rebaixadas a rejeito ideológico que "arruinaria a mente" das pessoas e "sujaria" o planeta. Despreza-se a riqueza filosófica e cultural presente nas crenças simbolizadas na figura e propaga-se assim o mito preconceituoso de que uma pessoa sem religião seria mais "avançada", "madura" ou "evoluída" do que um religioso.

Por exemplo:

 Essa imagem de cunho neoateísta que destila diversos     preconceitos e falácias contra o universo das religiões, principalmente generalizando a todos os sistemas diferentes de crenças características das vertentes fundamentalistas do cristianismo. A figura em questão é dividida em sete partes, cada uma comentada por mim :

1. A situação de cleros manterem pessoas “nas trevas” se aplica apenas às teocracias governadas por religiões organizadas e às denominações religiosas fundamentalistas. Nada há no conceito antropológico de religião que mantenha seus adeptos na ignorância e sob um controle moral clerical.
Muitas religiões não abraâmicas e diversas denominações religiosas abraâmicas, pelo contrário, justamente dão luz ao pensamento das pessoas, sendo que pela via da retidão ética, do caminho para a iluminação espiritual, além de muitos ensinamentos carregados de sabedoria semiempírica de vida como no caso do taoísmo e do budismo.
A imagem usa a dicotomia metafórica trevas/luz para tratar de conhecimento e de liberdade de conhecimento, e, como dito acima, isso só faz sentido em denominações fundamentalistas. Se formos analisar por um olhar antropológico e livre dessa dicotomia, perceberemos que a luz é oferecida tanto pela ciência como pelas religiões, ainda que atuando cada uma em campos específicos do conhecimento humano.
2. Sabe-se hoje que eliminar agentes patogênicos não é papel da religião. Nossa sociedade secular pós-moderna, à exceção das denominações fundamentalistas, já não trata a religião como um faz-tudo a englobar desde regras de vestimenta até rituais de cura, mas sim, no caso das religiões moderadas, como um norte espiritual e filosófico. Mesmo que suas mitologias tenham pouco potencial de mutabilidade, as religiões podem sim mudar, e estão portanto mudando de função. E muitos religiosos já não veem suas crenças como remédios para doenças de ordem não psicológica.
3. Isso também se restringe às denominações religiosas fundamentalistas. E ignora que inúmeros religiosos, muitos deles clérigos, não tratavam conhecimento como heresia, como no caso de diversas personalidades medievais cristãs e muçulmanas. A religião em si não tem nada contra o conhecimento que foge às suas competências. Quem se opõe ao conhecimento e o considera “heresia” é o fundamentalismo religioso.
4. A mesma refutação da parte 2 se aplica aqui. Tem-se hoje cada vez mais ciência de que a religião não tem entre suas funções tratar doenças e amputações, mas sim questões espirituais, filosóficas e às vezes psicológicas.
5. Novamente, isso não é função da religião. Comete-se aqui uma falácia de falsa analogia misturada com falácia do espantalho, porque a religião nunca almejou a competência de fornecer tecnologias ao ser humano – embora já tivesse contribuído muito no passado inspirando avanços na Arquitetura e na Engenharia Civil.
6. Apenas algumas religiões possuem mitos de criação que falam que o ser humano veio do barro. O universo de religiões no seu geral diverge sobre a origem mitológica do ser humano, muitas delas, aliás, concordando com a ciência quando dizem que viemos do “pó” – que pode ser interpretado como pó de estrelas. Isso sem falar nas correntes que metaforizam a criação humana a partir do barro ou de outras fontes. Afirmar, com base nas religiões abraâmicas, que todas as religiões afirmam que o ser humano veio do barro é a chamada falácia de composição, que imputa ao todo uma propriedade da parte.
7. Essa parte ignora que muitas religiões não são obscurantistas a ponto de só enxergarem o que “querem”. Doutrinas religiosas como a espírita e a asatrú dão muito espaço para seus adeptos enxergarem aquilo que os fundadores ou os adeptos antigos não enxergavam. Pelo visto, essa última parte generaliza a todas as religiões a relativa imutabilidade gnosiológica das religiões reveladas, cometendo assim, tal como a parte 6, uma falácia de composição.
***
Faço o seguinte apelo aos ateus que têm o costume de compartilhar imagens-panfleto neoateístas: leiam Antropologia e História antes de pensarem em divulgar figuras que falem de “religião” sem especificar qual religião criticam ou que generalizem as características de vertentes fundamentalistas do cristianismo a todas as crenças religiosas. Ninguém de nós quer ser estigmatizado e preconceituado com mais um motivo entre tantos – além de “filhos do diabo”, “depressivos” e “amorais”, corremos, com a divulgação de imagens desse tipo, o risco de sermos considerados ignorantes e mentirosos em termos de conhecimento sobre religiões e, portanto, preconceituosos tanto quanto os religiosos fundamentalistas.
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 Por


Fonte:Bule Voador e Consciência.blog.br

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