quinta-feira, 18 de novembro de 2010

'Ciência é uma questão de fé', defende pesquisador

A ciência, como sempre escutamos falar, é a mais confiável forma de conhecimento sobre o mundo porque se baseia em hipóteses passíveis de comprovação. A religião, por outro lado, baseia-se na fé. A figura de São Tomé ilustra muito bem a diferença. Na ciência, um ceticismo saudável é requisito profissional; na religião, crer sem ter provas é considerado virtude.


O problema dessa nítida separação entre "domínios do conhecimento que não se justapõem", como Stephen Jay Gould descreveu a ciência e a religião, é que a ciência possui o seu próprio sistema de crenças baseado na fé. Toda a ciência funciona a partir da suposição de que a natureza é organizada de uma maneira racional e inteligível. Você jamais poderia ser um cientista se achasse que o universo é uma confusão de fragmentos sem sentido onde se acha de tudo um pouco, frações justapostas ao acaso. Quando físicos sondam um nível mais profundo da estrutura subatômica ou astrônomos ampliam o alcance de seus instrumentos, eles esperam encontrar uma nova e coesa ordem matemática. E, até agora, essa fé foi convincente.

A mais refinada expressão de inteligibilidade racional do cosmos se encontra nas leis da física, as regras fundamentais segundo as quais a natureza funciona. As leis da gravidade e do eletromagnetismo, as leis que regem o universo dentro do átomo, as leis da mecânica, todas são expressas por detalhadas relações matemáticas. Mas de onde vêm essas leis? E por que são descritas desta forma?

No meu tempo de estudante, as leis da física eram consideradas como algo completamente intocável. O trabalho do cientista, como nos diziam, era descobrir as leis e aplicá-las, não questionar sua origem. As leis eram tratadas como "pressupostos", impressas no Universo como uma marca do criador no momento do nascimento cósmico, e imutáveis para todo o sempre. Portanto, para ser um cientista, era preciso ter fé na idéia de que o universo é regido por leis matemáticas, fidedignas, imutáveis, absolutas e universais, de origem não especificada. Era preciso acreditar que essas leis não falhariam, que não acordaríamos um belo dia e descobriremos o calor em fluxo do frio para o quente, ou a velocidade da luz mudando de hora em hora.

Ao longo dos anos, perguntei diversas vezes a meus colegas físicos por que as leis da física são o que são. As respostas variavam de "essa não é uma pergunta científica" até "ninguém sabe". A resposta favorita é: "não há motivo para elas serem o que são. Elas simplesmente são". A idéia de que as leis existem irracionalmente é profundamente anti-racional. Afinal de contas, a própria essência da explicação científica de alguns fenômenos é que o mundo é organizado de maneira lógica e existem motivos para as coisas serem como são. Se alguém seguir as pistas desses motivos em todo o percurso até o fundamento da realidade, as leis da física, somente para descobrir que a razão naquele ponto nos abandonou, isso seria zombar da ciência.


Será possível que a poderosa estrutura da ordem física que percebemos no mundo que nos diz respeito seja, em última análise, alicerçada em um absurdo irracional? Se sim, então a natureza é um embuste diabolicamente sábio: absurdo e ausência de sentido de alguma forma disfarçando uma engenhosa ordem e racionalidade.


Embora os cientistas tenham durante muito tempo uma inclinação a jogar para baixo do tapete as dúvidas referentes à origem das leis da física, vemos agora uma mudança considerável de postura. Isso se explica, em parte, pela crescente aceitação de que o surgimento da vida no Universo, e logo, a existência de observadores como nós, depende sensivelmente da forma das leis. Se as leis da física fossem apenas um saco com um monte de regras velhas e esfarrapadas, é quase certo que a vida não existiria.


Um segundo motivo pelo qual as leis da física agora começam a entrar no escopo do questionamento científico é a compreensão de que aquilo há tanto tempo considerado como leis absolutas e universais poderia não ser sequer verdadeiramente fundamental, mas talvez algo mais parecido com regimentos locais. Elas poderiam variar de um lugar para outro em uma escala mega-cósmica. Uma visão de cima, panorâmica, poderia revelar uma enorme colcha de retalhos de Universos, cada um com seu próprio conjunto característico de regimentos. Nesse "multiverso", a vida surgiria apenas nos locais com leis propícias à vida, então não é de se surpreender que nos encontremos em um universo de conto-de-fadas, ideal à vida. Selecionamos isso por conta da nossa própria existência.


A teoria do multiverso está se tornando cada vez mais popular, mas ela não explica exatamente as leis da física. Na verdade, esquiva-se da questão como um todo. Deve haver um mecanismo físico para criar todos esses universos e conferi-los leis. Esse processo exigiria suas próprias leis ou meta-leis. De onde elas vêm? O problema simplesmente foi transferido de um nível superior de leis do universo para o das meta-leis do multiverso.

É óbvio, portanto, que religião e ciência fundamentam-se na fé, a saber, na crença da existência de algo externo ao Universo, como um Deus ou um conjunto de leis inexplicados, talvez até uma enorme formação de Universos invisíveis também. Por esse motivo, tanto a religião monoteísta quanto a ciência ortodoxa não são capazes de apresentar uma explicação completa da existência física.

Esse fracasso compartilhado não é novidade, já que, antes de mais nada, a própria idéia de lei da física é teológica, fato que faz muitos cientistas torcerem o nariz. Isaac Newton teve primeiramente a idéia de leis absolutas, universais, perfeitas e imutáveis a partir da doutrina cristã de que Deus criou o mundo e o organizou de forma racional. Os cristãos imaginam Deus como o sustentáculo da ordem natural de além do universo, enquanto os físicos pensam em suas leis como ocupantes de um reino abstrato transcendente de relações matemáticas perfeitas.

E assim como os cristãos afirmam que a existência do mundo depende totalmente de Deus, embora o oposto não seja verdade, da mesma forma os físicos crêem em semelhante assimetria: o Universo é regido por leis eternas (ou meta-leis), mas as leis são completamente resistentes e não afetadas pelo que acontece no Universo.

Para mim fica a impressão de que não existe esperança para um dia explicarmos por que o universo físico é como é enquanto estivermos presos a leis imutáveis ou meta-leis que existem irracionalmente ou são impostas pela providência divina. A alternativa é considerar as leis da física e o Universo por elas regido como parte e componente de um sistema unitário, e serem incorporados juntos dentro de um esquema explanatório comum.

Em outras palavras, as leis devem ter uma explicação de dentro do Universo e não devem apelar a um agente externo. Os detalhes dessa explicação são assunto para futuras pesquisas. Mas enquanto a ciência não apresentar uma teoria das leis do Universo que seja passível de comprovação, sua alegação de que ela não se baseia em fé permanece claramente falsa.


* Paul Davies é diretor do Beyond, centro de pesquisa da Arizona State University, e autor do livro "Cosmic Jackpot: Why Our Universe Is Just Right for Life".

Fonte:http://g1.globo.com/Noticias/Ciencia/0,,MUL195628-5603,00-CIENCIA+E+UMA+QUESTAO+DE+FE+DEFENDE+PESQUISADOR.html

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