A Vida em um Mundo Repleto de Imoralidade: A Ética de Estar Vivo
Nota: essa é uma tradução do texto de Aaron Swartz, publicado originalmente em seu blog em 2 de agosto de 2009. Ao final do texto, há alguns comentários meus.

Foto de Aaron Swartz na wikipédia
Eu me considerava um indivíduo 
particularmente bom. Eu não matava pessoas, por exemplo. Mas aí Peter 
Singer argumentou que animais são conscientes e que comê-los leva-os a 
serem mortos e isso não é lá tão moralmente diferente de matar pessoas 
afinal. Então, virei vegetariano.
Novamente, achava ser um bom indivíduo. 
Mas aí Arianna Huffington me disse que por dirigir um carro eu estava 
emitindo gases tóxicos no ar e mandando dinheiro para ditaduras em 
outros países. Então, comprei uma bicicleta.
Mas aí eu percebi que o banco da minha 
bicicleta era costurado por crianças em más condições de trabalho em 
oficinas no exterior e sua tubulação era feita por metais extraídos da 
terra por minerações que causam problemas geológicos. Na verdade, 
qualquer dinheiro que eu gastasse provavelmente seria usado para oprimir
 pessoas ou destruir o planeta de alguma forma. E se eu ganhasse 
dinheiro, parte dele iria para o governo, que o usaria para explodir 
pessoas no Afeganistão ou no Iraque.
Pensei em viver só de coisas que 
encontrasse no lixo, como alguns amigos. Assim não seria responsável por
 incentivar sua produção. Mas aí eu percebi que algumas pessoas compram 
aquilo que não conseguem achar no lixo; se eu pegar algo do lixo antes 
de alguém, essa pessoa pode decidir, então, comprar.
A solução parecia clara: Eu teria que me
 desconectar e ir viver em uma caverna, colhendo nozes e frutas. Eu 
provavelmente ainda estaria exalando CO2 e usando alguns produtos da 
Terra, mas provavelmente somente em níveis sustentáveis.
Talvez você discorde que seja moralmente
 errado matar animais ou explodir pessoas no Afeganistão. Mas, 
certamente, você pode perceber que isso pode ser, ou, ao menos,
 que alguém pode achar que é imoral. E acredito que seja semelhantemente
 claro que comer um hambúrguer ou pagar impostos contribui — em bem 
pouca parte; talvez só tenha a possibilidade de contribuir — a essas 
coisas.
Mesmo que você não acredite, o cotidiano
 tem um milhão de maneiras mais diretas. Pessoalmente, eu acho errado 
que eu possa sentar a uma mesa e alegremente devorar uma refeição 
enquanto alguém tenha que levar mais comida à minha mesa e outra pessoa 
trabalhe sem parar ao fogão. Cada vez que eu peço comida, eu os faço 
trabalhar mais para mim. (Talvez eles recebam dinheiro em troca, mas, 
certamente, eles prefeririam que eu só desse o dinheiro para eles). 
Novamente, você pode achar que não há nada de errado nisso, mas espero 
que você possa aceitar a possibilidade. E isso é, obviamente, minha 
culpa.
Na caverna, eu pensei que estaria a salvo. Mas aí eu li o último livro de Peter Singer.
 Ele argumenta que com poucos centavos, você pode salvar a vida de uma 
criança. (E.g., por 27 centavos de dólar estadunidense você pode comprar
 os sais de reidratação oral que salvarão uma criança de 
uma diarreia fatal). Talvez eu estivesse matando pessoas afinal.
Eu não poderia ganhar dinheiro sem ser 
imoral, pelos motivos descritos acima. (Apesar de que talvez valha a 
pena ajudar a financiar o bombardeio de crianças no Afeganistão para 
ajudar a salvar crianças no Moçambique). Mas em vez de viver em uma 
caverna, eu poderia ir à África trabalhar como voluntário.
Claro, se eu fizer isso há outras mil 
coisas que não estarei fazendo. Como posso decidir qual ação salvará 
mais vidas? Mesmo que eu tome o tempo para descobrir, esse será tempo 
gasto em mim, e não salvando vidas.
Parece ser impossível ser moral. Não só 
tudo o que eu faço causa grande dano, mas tudo o que eu não faço também.
 Considerações comuns de moralidade são difíceis, mas atingíveis: não 
minta, não trapaceie, não roube. Mas parece que viver uma vida moral nem
 sequer seja possível.
Mas se moralidade é inatingível, 
certamente eu deveria simplesmente fazer o melhor que posso. (Para que 
haja um dever, deve haver a possibilidade de realizá-lo, afinal). Peter 
Singer é um bom utilitário, então talvez eu devesse tentar maximizar o 
bem que eu faço ao mundo. Mas mesmo isso parece um modelo incrivelmente 
oneroso. Eu devo parar de comer não só carne, mas produtos animais em 
geral. Eu não devo parar de comprar alimentos produzidos em fábricas, eu
 devo para de comprar completamente. Eu devo pegar das lixeiras aquilo 
que outras pessoas provavelmente não vão procurar. Eu devo viver onde 
outros não vão se perturbar.
Claro, toda essa preocupação e estresse 
está me impedindo de fazer qualquer bem ao mundo. Eu mal posso dar um 
passo sem pensar a quem isso machuca. Então eu decidi não me importar 
com o mal que eu posso estar causando e apenas me focar em fazer o bem 
– danem-se as regras.
Mas isso não se aplica as regras 
inspiradas por Peter Singer. Esperar na fila do mercado me impede de 
usar esse tempo com trabalho que salvaria vidas (e pagar vai me custar 
dinheiro que salvaria vidas) — melhor roubar. Mentir, trapacear, 
qualquer crime pode ser semelhantemente justificado.
Parece paradoxal: em minha busca de 
fazer o bem, eu justifiquei todo tipo de mal. Ninguém me questionava 
quando eu pedia um bife suculento, mas quando eu roubo refrigerante 
todos recuam. Há sentido em seguir as regras deles ou elas são só outro 
exemplo da imoralidade do mundo? Algum filósofo já considerou essa 
questão?
Meus comentários:
A Ética do Crime
O final desse texto de Swartz traz a 
questão da moralidade de seguir as regras (leis, em especial). Há quem 
argumente que, vivendo em uma democracia representativa, como a nossa, 
temos o dever ético de seguir as leis criadas por nossos representantes 
no poder legislativo, e qualquer quebra da lei é, então, imoral (estou 
usando “ética” e “moral” como sinônimos aqui). Swartz, pelo jeito, não 
concordava com isso — discordância essa que pode ter o levado a morte.
Não acredito que qualquer violação da 
lei seja imoral. Acredito que nosso sistema de democracia indireta seja o
 ideal, mas, certamente, não é perfeito (no sentido de que tudo que não é
 permitido seja imoral), e mesmo que o fosse, alguma violação de uma 
lei, em algum caso específico, poderia não ser imoral (os legisladores 
não podem prever todas as possibilidades de casos em que uma determinada
 ação pode ser tomada).
Entretanto, há o problema de saber o que
 realmente é imoral. Eu, pessoalmente, não acho que seja imoral baixar e
 distribuir artigos científicos ilegalmente — o bem feito por essa ação 
(conhecimento disponível a quem de outra forma não o teria, incluindo 
professores, médicos, cientistas que, assim, podem o usar para gerar 
maiores benefícios à sociedade; ou mesmo como forma de protesto contra o
 absurdo sistema atual de publicação)
 parece ser muito maior do que o mal (um prejuízo imperceptível — isso 
se existente — a algumas empresas). Mas como posso eu julgar que isso 
realmente não seja imoral? Como posso ter certeza de que minha 
capacidade de discernir entre moral e imoral é suficiente para que a 
violação de leis criadas por meus representantes seja justificada? De 
qualquer forma, não acho que seja imoral simplesmente por ser ilegal.
Há sentido em seguir as regras deles ou 
elas são só outro exemplo da imoralidade do mundo? pergunta Swartz. 
Quando pedimos o bife suculento, por horríveis que sejam as 
consequências desse ato, não somos questionados, diferentemente de 
alguém que rouba uma lata de refrigerante por não querer financiar 
guerras. Não acho que nós deixamos toda a nossa base moral própria de 
lado e consideramos tudo o que não é crime como moral e tudo o que é 
crime como imoral. (Imagino que a maioria das pessoas consideraria o ato
 de baixar ilegalmente um episódio de Game of Thrones eticamente 
superior ao de passar por uma criança que está se afogando e escolher 
não ajudá-la, independente do que diz a legislação sobre esses atos). 
Mas o que acontece é que baseamos muito nossa moral nos costumes (em 
alguns lugares do mundo, apedrejar uma mulher que fugiu do marido que a 
espancava — o que é um direito legal dele — é um ato bem visto por boa 
parte da população). Sempre comemos carne, então nem sequer pensamos 
sobre as consequências desse ato; sempre achamos que roubar é sempre 
errado, então, também não ponderamos as motivações do crime.
A Base Filosófica Ideal Para a Ética
Esse pensamento de Aaron Swartz segue o 
modelo de ética consequencialista, segundo o qual a ação eticamente 
superior a ser tomada é sempre aquela que maximiza a felicidade e 
minimiza o sofrimento. E esses aparentes paradoxos, como o citado por 
Swartz, são bastante apontados por críticos desse modelo filosófico. Há o
 exemplo clássico: seguindo o consequencialismo, deve ser ético matar 
uma pessoa saudável para que seus órgãos sejam usados para salvar outras
 cinco vidas.
Em contraposição ao consequencialismo, 
há a ética deontológica, segundo a qual, o que é moralmente certo ou 
errado depende de regras estabelecidas. Nesse caso, temos o problema de 
descobrir quais regras devem ser estabelecidas.
A meu ver, nenhum dos sistemas parece 
funcionar muito bem, mas uma junção dos dois pode ter bons resultados. 
Uma base consequencialista, mas com regras para remediar seus problemas 
talvez. Essa abordagem deve ajudar quem busca viver da maneira mais 
ética possível a contornar esses problemas encontrados por Swartz.
A Ética do Consumo
As reflexões que me causaram esse texto 
me fizeram ver com mais clareza uma questão que frequentemente vejo ser 
levantada: o consumo de carne pode ser eticamente justificado? A 
resposta mais óbvia (e, acredito, correta) é não; o consumo de carne não
 pode ser moralmente justificado. Mas a escolha de não ir morar em uma 
caverna sobrevivendo de colheitas ou de não ir à África trabalhar como 
voluntário também não. A diferença está na dificuldade dessas ações e no
 quanto elas interferem em nosso cotidiano.
Se eu estou disposto a diminuir meu 
consumo de carne e buscar comprar carne de empresas que têm preocupações
 éticas, mas não deixar de comer carne, eu tenho, nesse sentido, um 
nível de ética superior ao daquele que não se importa em comer muita 
carne e com a procedência da carne que come, e inferior ao daquele que 
escolheu, por motivos éticos, não comer carne. Do mesmo modo, aquele que
 não come carne, mas come outros alimentos de origem animal ou faz uso 
de aparelhos eletrônicos (cujas peças são, em boa parte, manufaturadas 
por trabalho semi-escravo) tem um nível de ética inferior ao daquele que
 deixa de comer todo tipo de alimento de origem animal e abre mão do uso
 de qualquer aparelho eletrônico. (Acredito que o uso de aparelhos 
eletrônicos possa ser justificado pela fácil transmissão de conhecimento
 e informações que podem ser usadas para benefício da sociedade — pode 
valer a pena financiar trabalho semi-escravo na China para ajudar outras
 pessoas em outras partes do mundo. Mas para que seja justificado, o uso
 desses aparelhos deve realmente gerar um benefício maior do que o 
malefício do trabalho semi-escravo que ele causa — ou seja, o uso só por
 comodidade do usuário (compartilhar links e fotos no Facebook ou 
assistir a séries de TV) não é justificado).
A escolha de comer ou não carne só nos coloca em um nível diferente de ética de consumo.
Renan Bohrer
 
 
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