domingo, 12 de julho de 2009

Imagine essa parceria...só podia dar em merda !!!!!



Esta é uma história sobre poder, dinheiro e religião. Não é ficção, mas envolve uma das maiores igrejas do mundo, o Estado brasileiro e dinheiro que sai do seu bolso. Muito, muito dinheiro.

Poucas pessoas sabem, mas em novembro do ano passado o presidente Lula foi à sede da Igreja Universal do Reino de Deus em São Paulo, (”a caminho de Washington”, segundo as fontes oficiais), para assinar, com Edir Macedo, um acordo entre a República Federativa do Brasil a Universal. Sim, um acordo entre o Estado que pertence a todos os brasileiros e deveria se guiar pelo bem comum, e a instituição cujo objetivo é promover e expandir a fé de alguns deles. Ao longo dos seus 20 artigos, o documento estabelece uma série de diretrizes na relação da igreja com o Estado, com as Forças Armadas e com os cidadãos brasileiros.

Como era de se esperar, o pacto logo foi denunciado como um instrumento de privilégios para a Universal. Para começar, o governo só revelou o conteúdo do documento depois que ele já tinha sido assinado. Por que razão se esconderia um acordo que é perfeitamente legal e justo? Como se soube depois, as negociações duraram anos e o seu conteúdo circulou por diversos ministérios. Mas, sintomaticamente, a sociedade foi impedida de tomar conhecimento do tema. A imprensa, o legislativo e outros órgãos públicos têm o poder e o dever de fiscalizar as ações do executivo para evitar abusos, mas o desejo da Universal e do governo não era esse.

Os cardeais da igreja se apressaram em afirmar que nada havia no documento além de direitos já estabelecidos. Ele não criava privilégio algum, mas celebrava a liberdade de culto e a laicidade do Estado. Afinal de contas, o pacto abria o caminho para que outras igrejas assinassem documentos de igual teor.

Ora, mas se o documento não continha nenhuma novidade, por que assiná-lo? E se outras igrejas devem procurar acordos semelhantes, isso é uma admissão clara de que os termos atuais realmente concedem privilégios que elas não têm — e que podem jamais ter se não tiverem o dinheiro e a organização suficientes para assinar acordos iguais. Quem poderia garantir que esses acordos realmente seriam assinados, depois de quanto tempo e em que termos? Tudo parecia muito improvável.

A idéia de que o governo estava favorecendo ilicitamente a Universal se aprofundou quando a base governista escolheu um deputado ligado à igreja para ser relator do tema na Câmara, onde o acordo deveria ser aprovado antes de entrar em vigor. Apesar de representantes de outros grupos terem procurado o relator, seu parecer foi francamente favorável ao acordo e sequer citou as posições em contrário. Em suas vinte e cinco páginas, o relator não encontrou espaço uma única vez para citar o art.19 da Constituição Federal, que estabelece a laicidade do Estado nos seguintes termos:

É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;

O que é um acordo senão uma relação de dependência ou aliança? A separação entre Igreja e Estado é um princípio fundamental da democracia porque sem ela um credo sempre acaba por receber tratamento diferenciado dos outros. Assinando tratados com o Estado, por exemplo. Mas nada disso comoveu os parlamentares.

Alguns deputados e defensores da laicidade do Estado se mobilizaram para levar a discussão do tema a outras comissões, apontando sua inconstitucionalidade, o desvio de recursos públicos e outras anomalias. No entanto, o governo tem maioria na Câmara e aprovou regime de urgência na tramitação do acordo, removendo qualquer possibilidade de discussão em outras comissões, inclusive a Comissão de Constituição e Justiça, pela qual todos os projetos passam, e que deveria ser o maior obstáculo à aprovação de um documento inconstitucional.

Enquanto isso, apesar de ter sido amplamente informada sobre o tema, a grande imprensa se recusou a tratar do assunto. Seu silêncio foi denunciado mais de uma vez pelo importante Observatório da Imprensa, em suas versões online e televisiva, sem no entanto conseguir furar o silêncio da mídia. Nem mesmo os benefícios mais escandalosos, como a concessão de recursos públicos para manutenção dos bens móveis e imóveis da igreja foram suficientes para romper esse cerco.

O acordo prevê ainda que o Estado brasileiro seja obrigado a “promover a fruição dos bens, móveis e imóveis, de propriedade da Igreja”, segundo o art.6o. Essa conta milionária será paga por cidadãos de todos as crenças e descrenças, e a Universal gozará de status e poderes únicos no ordenamento jurídico brasileiro. Além disso, o governo brasileiro fica obrigado a oferecer ensino religioso em escolas públicas segundo a doutrina da Universal, contrariando a Lei de Diretrizes e Bases, que veda “quaisquer formas de proselitismo”. E tem mais: na prática, o pacto impede que a justiça trabalhista acolha causas de ex-sacerdotes e ainda estabelece que as sentenças da Universal em matéria matrimonial, baseadas em seu regulamento interno, serão homologadas pela lei brasileira! Mas os absurdos não param por aí: o acordo tem uma cláusula permitindo que ele seja livremente modificado e expandido ao longo dos anos pelo executivo, sem necessidade de aprovação pelo legislativo, e dá poderes ao braço executivo da igreja para celebrar convênios com o governo. Como o acordo é bilateral, não pode ser encerrado sem a anuência da IURD. Para todos os efeitos, é perpétuo!

Isso tudo parece ficção saída de um Dan Brown tupiniquim, mas não é. Como pode tudo isso ser verdade, e sequer chegar a ser noticiado pela imprensa? A realidade, mais uma vez, supera a ficção. Por mais incríveis que pareçam esses acontecimentos, eles realmente se desenrolaram nos últimos meses, e da maneira como foram descritos. Com uma pequena diferença: onde se leu Edir Macedo, o personagem de fato é Joseph Ratzinger. O tratado não foi assinado com a Igreja Universal, mas com a Sé de Roma, também chamada de Santa Sé, órgão máximo da Igreja Católica Apostólica Romana. Os benefícios descritos, no entanto, são os mesmos. O que o acordo faz é obrigar o Estado a mover montanhas para um credo e seus fiéis, em detrimento de todos os demais.

Se o leitor ficou chocado com o poder, o dinheiro e os privilégios concedidos ao bispo que preside a Catedral da Fé e sua igreja, não pode agora mudar de idéia e imaginar que a história seria menos escandalosa com outro protagonista, como o bispo de Roma e sua igreja. Se somos todos iguais perante a lei e o Estado, um acordo selado com qualquer igreja ou credo é igualmente abominável. A lei deve ser uma só e a mesma para todos. E, no entanto, neste momento o nosso governo trama para criar uma lei — sim, porque o acordo com a Sé de Roma é um tratado internacional, com força de uma lei que não pode ser revogada ou sequer alterada pelo legislativo –, uma lei que dá poderes e direitos especiais a um grupo religioso. E com a plena conivência da imprensa.


É evidente que a única urgência aqui é a de impedir a população de tomar conhecimento do que está acontecendo. Mas o regime de urgência instaurado permite que o plenário da Câmara dos Deputados vote o projeto a qualquer momento. A imensa parte dos deputados está indiferente ou favorável à aprovação, porque não vê problema algum no acordo ou porque não deseja contrariar os interesses do governo e da Igreja. Um pequeno grupo de parlamentares, contudo, tem se posicionado com extrema clareza e lucidez contra esses absurdos. Alguns dos mais destacados são André Zacharow, Ivan Valente, Pedro Ribeiro e Dr. Rosinha.

Diversas entidades, dos mais diversos tipos, já declararam ser contra o acordo: Ação Educativa, Associação Brasileira de Liberdade Religiosa e Cidadania, Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, Superior Órgão de Umbanda do Estado de São Paulo, Associação Brasileira dos Templos de Umbanda e Candomblé, Associação da Parada GLBT de São Paulo, Católicas pelo Direito de Decidir, Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos, Grupo Corsa, Instituto Edson Néris, Catedral Presbiteriana do Rio, Ile Asé Igbin de ouro, entre outros (veja uma lista um pouco mais completa aqui).

Você também pode e deve ajudar nesta luta. O histórico das concordatas em todo mundo é tenebroso, como se pode conferir no site www.concordatwatch.eu. No Brasil não é diferente. Mande cartas aos jornais e principalmente aos seus deputados (há uma lista de emails de lideranças aqui ou utilize diretamente o site da Câmara). Acrescente seu nome ao abaixo-assinado em http://www.petitiononline.com/BrasVat/petition.html. Os dados essenciais sobre a concordata estão descritos em formato de perguntas e respostas simples em acordovaticano.blogspot.com.

As adesões institucionais são especialmente importantes, pois agregam mais peso e legitimidade. Se você participa de uma entidade, igreja, terreiro ou qualquer outra instituição, peça que eles se manifestem o quanto antes, ou pode ser tarde demais.

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Texto de Daniel Sottomaior

O acordo assinado “por ocasião da Audiência Privada do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva com Sua Santidade o Papa Bento XVI – Vaticano, 13 de novembro de 2008″ pode ser lido nesta nota do Itamaraty.