Fonte: Consciencia.blog.br
Editor: Alex Rodrigues
Pode-se perceber que, desde o ano
passado, vem crescendo enormemente, ao menos no Brasil, o movimento
ateísta na internet, que ora luta pelo respeito aos direitos e à
dignidade dos ateus por parte da parcela teísta da sociedade, ora se
investe em criticar as religiões em seus fundamentos filosóficos, morais
e práticos. Mas uma parcela notável dessa militância tem se enveredado
num caminho, baseado no vale-tudo para desqualificar as crenças das
pessoas, que é justamente contraproducente a esses dois propósitos.
Os
ateus cobram respeito ao restante da sociedade, mas parte significativa
deles está fazendo muito para desmerecê-lo. Críticas difamatórias,
reducionistas e falaciosas às religiões em geral; ataques
preconceituosos às mesmas e mesmo blasfêmias gratuitas injustificáveis
acabam desmoralizando a categoria ateísta e deslegitimando o propósito
do estabelecimento de uma cultura de respeito mútuo às diferenças.
É
perceptível, aliás, que muitos descrentes querem não estabelecer essa
cultura tolerante, mas sim transformar toda as pessoas em ateus e ateias
e tornar as religiões algo pertencente ao passado. São os chamados
neoateus, que investem boa parte de suas horas de internet para dirigir
críticas, muitas delas bastante pesadas, às crenças religiosas em geral.
Muitas
dessas críticas são válidas quando questionam, por exemplo, versículos
moralmente questionáveis da Bíblia e do Corão e repudiam as tantas
violências e ameaças de retrocesso ético perpetradas ao longo dos
séculos e na atualidade em nome do Deus monoteísta. Mas perdem a razão
quando passam a usar de reducionismos e falácias para desqualificar
todas as religiões.
Esses vícios
argumentativos são bem visíveis naquelas imagens-panfleto,
compartilhadas no Facebook, que tentam estabelecer dicotomias entre
religião (genericamente falando) e ateísmo; mundo com religiões e mundo
sem religiões; religião e ciência; etc. Diversas dessas figuras já foram criticadas no Consciencia.blog.br.
Comete-se ali a falácia dupla de inversão do acidente e generalização apressada, ao tornar todas as
religiões – incluídas também as vertentes liberais das religiões
abraâmicas, as religiões-filosofias orientais de caminho, as tão
diversificadas religiões pagãs e neopagãs, as crenças monoteístas não
abraâmicas (como a Fé Bahá’i, o sikhismo e o espiritismo), as crenças
espirituais autóctones (o que inclui espiritualismos indígenas e as
religiões populares chinesa e africanas), o xamanismo, o animismo e os
sincretismos – exatamente similares às correntes fundamentalistas
cristãs, judaicas e islâmicas.
Além
disso, são cometidos erros crassos de História e Sociologia, ao se
insistir em reproduzir as já refutadas crenças iluministas de que a
Idade Média teria sido uma “Idade das Trevas” de completa estagnação
científica e tecnológica na Europa e que a substituição completa da
religiosidade e da espiritualidade pela Razão e pela Ciência traria
felicidade e progresso à humanidade; ignorar que o Império Islâmico
medieval vivenciou importantes avanços científicos e protegeu obras
filosóficas da Europa Antiga; omitir que as religiões em geral continuam
tendo uma importância filosófica – tendo destaque as religiões
orientais de dharma –; generalizar àquela religião em todas as
suas denominações o fundamentalismo de apenas uma porção de suas
vertentes; passar adiante a mentira de que a ciência e sabedoria antigas
teriam sido totalmente destruídas na Idade Média europeia; entre tantos
outros erros.
E isso sem falar na
total falta de senso antropológico por parte de grande porção dos
neoateus, ao não reconhecerem as importâncias gnosiológicas das
religiões – que existem em campos do conhecimento humano diferentes da
Ciência e da Engenharia, como a Cultura, a Mitologia e parte da
Psicologia e da Filosofia – e não tentarem entender por que as pessoas
continuam religiosas e apegadas aos velhos folclores – ou mesmo aderem a
outras religiões depois de se desiludirem com aquelas de onde vieram –
apesar de todos os avanços da Ciência, do secularismo e da expansão da
literatura racionalista.
E
um outro ponto muito grave da militância neoateísta que se tem
observado é a recorrência aos puros insultos e blasfêmias, tratando as
religiões em geral como puros rejeitos ideológicos, escarnecendo de
figuras de deuses e santos, substituindo o nome de Deus por de
personagens de desenhos animados (mais notadamente Goku, da franquia
japonesa Dragon Ball), entre outras evidentes ofensas.
Afirmam
os integrantes dessa modalidade de militância ateísta: “Respeitamos
pessoas, e não crenças”. Essa frase faz sentido quando a intenção do
indivíduo ou do movimento como um todo é criticar as “verdades” trazidas
pelas religiões, ainda mais aquelas que conflitam com o nosso contexto
ético-moral, e negá-las enquanto dogmas que não deveriam ser
questionados. Mas perde a razão quando é usada no propósito do
achincalhamento gratuito das crenças.
Queiram
ou não os ateus, as pessoas afetadas quando, por exemplo, veem a figura
de Jesus escarnecida acreditam na(s) divindade(s) profanada(s). E isso
ofende não tanto a elas próprias, mas, em sua mentalidade, à(s)
divindade(s) ofendida(s). E ofender uma divindade lhes é ainda pior do
que desrespeitar a própria família delas. Mas isso acaba não passando
pela cabeça daqueles que insistem em comparar Jesus a Goku ou chamar
Ganesha de aberração genética. Porque não tentam entender a lógica de
pensamento dos religiosos.
Tamanha
agressividade parece ser o revide a décadas ou mesmo séculos de
perseguição religiosa. Pensam os ateus militantes: se os religiosos em
sua maioria passaram esse tempo todo nos desrespeitando, eles merecem
levar o troco. Parte-se para uma política de vingança, para, numa
catarse coletiva, descontar tudo o que foi sofrido ao longo de anos de
discriminação.
Esse comportamento,
porém, é bastante irracional e deletério se percebermos que ele se
baseia mais numa sede vingativa; numa visão, como visto acima, enviesada
e preconceituosa das religiões e/ou na intenção de tornar a população
nacional totalmente ateia do que no próprio propósito de tornar os ateus
uma categoria plenamente aceita pelo restante da sociedade.
O
meio ateísta deveria refletir sobre essas ações. Elas estão mais
prejudicando do que fortalecendo a reputação dos ateus. E tendem a
substituir os velhos motivos de preconceito – que seríamos depressivos,
amorais, tendentes ao crime e de vida vazia – por novos – que os ateus
seriam odiadores de religiões e intolerantes contra as crenças das
pessoas, desejariam a destruição de todos os sistemas de crença
espiritual e costumariam recorrer à mentira e à blasfêmia para
desqualificar as religiões.
E tudo o
que os ateus menos querem é continuar sendo vítimas de preconceito e
discriminação e o serem por ainda mais motivos do que os atuais. Se
realmente têm o combate à ateofobia, ao invés da conversão generalizada
das pessoas ao ateísmo, como prioridade, terão que rever suas práticas
relativas a falar de religiões e deuses.
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