Eternidade...
Publicado em 04/10/2013 por Barros
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A lembrança mais forte que tenho do período em que estava sendo doutrinado para me plugar à Matrix
é a da representação artística do Paraíso impressa na capa de uma
revista chamada A Sentinela, mantida e publicada pela religião
denominada Testemunhas de Jeová. Era um desenho em preto e branco muito
bonitinho que mostrava uma paisagem com montanhas ao fundo e com um
terreno levemente ondulado em primeiro plano, gramado, cheio de árvores e
de flores, com dois casais, um de adultos e o outro de idosos, sorrindo
enquanto olhavam duas criancinhas afagando a juba de um enorme leão.
Não
lembro quem me explicou que aquilo era o Paraíso, mas lembro que me
disse que era um lugar muito bonito, onde sempre era dia, com um clima
eterno de primavera; onde as pessoas estariam sempre sorrindo, sempre
felizes; onde não haveria nenhum sentimento ruim, nem dor, nem morte, e
até mesmo onde as feras seriam como bichinhos de estimação.
O
meu cerebrozinho infantil ficou fascinado com aquilo. Claro que ficou.
Os religiosos usam, mais ou menos, as mesmas técnicas que os pedófilos
para seduzirem as crianças, só que o abuso que eles cometem, geralmente,
se restringe ao nível mental.
Mas
o caso é que a ilusão da Vida Eterna é algo muito próximo daquela cena
do chá do livro As Aventuras de Alice no País das Maravilhas. Alguém
apresenta um tipo de situação que só faz o mínimo de sentido se você
considerar apenas aquele momento, como quando eu olhei o desenho a
primeira vez, sem se preocupar com passado e futuro, com causa e efeito,
e, mais importante de tudo, sem fazer perguntas.
A ideia da Vida Eterna desmorona por completo ao som de frases que terminam com um ponto de interrogação.
Talvez
por isso mesmo que eu posso quase apostar que o crente comum não
conseguirá lembrar de ninguém discutindo o assunto; como não conseguirá
lembrar de nenhum livro, nenhum filme, nenhum sermão, nenhuma comunidade
no Facebook falando sobre a Eternidade, sobre a Vida Eterna.
Sou capaz de apostar que ele nunca se pegou pensando nisso, nunca parou
para racionalizar o que seria viver para sempre; nunca tentou se
imaginar vivendo no Paraíso, no lugar que espera ter como prêmio o
direito de morar depois de morto, e pelo que pauta toda sua vida.
Não
é algo um tanto quanto estranho? Viver uma vida toda sob regras rígidas
para alcançar a graça, o direito, a recompensa de ir para um
determinado lugar sobre o qual nunca se pensou a respeito, tendo-se, no
máximo, uma ideia estática do que seja esse lugar, como uma visão de um
desenho numa revista? Você passaria 10 anos que fosse da sua vida
trabalhando de sol a sol para conseguir economizar dinheiro para comprar
um apartamento do qual você não sabe nada, nem nunca procurou saber, e
do qual só viu um desenho em preto e branco? Provavelmente não. Mas os
crentes agem assim. Eles querem morar no Paraíso, mesmo nunca tendo
parado para pensar sobre o assunto, sobre como será viver lá. Claro que
eles não estão com nenhuma pressa e, se são acometidos de alguma doença
que pode se complicar e levá-los à morte, e, portanto, mais rapidamente
para o Céu, eles, como todos nós, tratam de adiar essa viagem.
Se
eu pudesse voltar no tempo para encontrar de novo aquela pessoa que me
explicou o que era o Paraíso, eu gostaria muito de pedir para ela
responder umas poucas perguntas que aquele mesmo cérebro que ela estava,
então, seduzindo, acabou por formular depois que se tornou imune às
investidas desses abusadores infantis. Serão esses questionamentos que
eu vou passar a expor nos textos que seguem.
Eu
vou fazer algo que, se não fosse surtir justamente o efeito contrário
por atiçar a curiosidade das pessoas, o papa faria questão de proibir:
Eu vou racionalizar a Eternidade.
‘
Eu
acho a visão esteriotipada que as pessoas fazem da Vida Eterna algo
muito engraçado, para não dizer ridículo. Supõe-se que, na Eternidade, a
vida será sempre vivida ao ar livre, numa eterna manhã primaveril de
domingo, onde as pessoas andarão sorrindo para o vento, vestidas em
camisolões folgados de cores claras, descalças, pisando num chão de
nuvem, ou num chão de grama de um mundo-jardim, felizes da vida e sem
nenhuma preocupação. Nada de contas a pagar, nem dor de barriga, nem
reuniões de condomínio, nem frustrações, nem desejos, nem ambições, nem
inveja, nem raiva, nem emoção, nem surpresa, nem medo, nem decepções,
nem tortas de limão, nem sexo, nem tv, nem… epa!, peraí. Tem certeza de
que Vida Eterna não é o mesmo que Morte Eterna? Ah, tá bom: tem
diferença. Ok.
Vamos, então, fazer algo que, acho eu, você nunca havia feito antes: racionalizar a Eternidade.
A
primeira coisa que preciso supor é que as pessoas entrarão na
Eternidade com um corpo físico. Alguém poderia ser contrário a essa
suposição, mas veja: o Inferno também faz parte da Eternidade e lá as
pessoas, obrigatoriamente, terão de volta seus corpos, visto que Deus o
projetou para as pessoas serem torturadas com torturas físicas. Logo,
será preciso um corpo físico cheio de juntas, pontos sensíveis e com um
sistema nervoso tinindo para poder dar conta de todos esses estímulos.
Não dá para imaginar um espírito sentindo dor e rangendo os dentes dá?
Não, não dá. Assim, admitindo-se que Deus tem sempre o mesmo peso e a
mesma medida, já que uns passarão a Eternidade com o seu corpinho no
Inferno, não tem por que não imaginar que acontecerá o mesmo com os que
forem agraciados com o Paraíso.
Muito
bem: depois do Juízo Final, os que forem salvos terão também seus
corpos de volta. Mas, admitindo-se que uma beata que morreu aos 96 anos
tenha tido vários corpos físicos durante a sua vida — já que ela foi um
bebê, uma menina, uma moça, uma mulher adulta, uma senhora, uma velhinha
—, com qual deles ela entrará na Eternidade?
Você já havia pensado nisso?
Será
que a velhinha de 96 anos terá de volta apenas o corpo com o qual
encontrou a morte? Seu “último” corpo? Assim, eu deveria supor que
haverá muitas criancinhas e muitos bebês no Paraíso, ou seja, aqueles
que morreram ainda bebês ou em tenra idade e foram salvos. Deve então
haver algum tipo de serviço de babá no Céu? Sim, porque alguém terá que
tomar conta desses bebês eternamente, pois eles morreram com corpos e
mentes de bebês e vão se comportar de acordo. Aliás, o fato de estarem
no Paraíso não fará a menor diferença para eles. Fará diferença apenas
para os outros que poderão se distrair com as suas gracinhas. E me causa
arrepios imaginar um Deus que criou uma Eternidade onde alguns dos
seres que lá habitarão — no caso, os bebês — serão enfeites vivos que
servirão apenas para o deleite dos outros que, por sorte, tiverem a
consciência da própria existência e condição. Algo que os bebês
certamente não têm e nem terão. Na Terra, isso seria apenas uma fase da
vida, mas, na Eternidade, isso seria tudo que eles poderiam ser:
enfeites vivos eternos.
E
você não acharia desconfortável, minha leitora, depois de ter morrido
velhinha, bem velhinha, com seu corpinho decrépito, passar toda a
Eternidade olhando aquelas curvas perfeitas, aquelas peles lisinhas,
aqueles rostos graciosos, aqueles peitos firmes das mocinhas que
morreram na “flor da idade”? Ou devo supor, também, que o corpo físico
que habitará o Paraíso terá um cérebro um tanto quanto alterado, um tipo
de versão atualizada do software que temos hoje, que não permitirá que
as pessoas sintam certas coisas, como inveja e saudade? Você terá que
concordar comigo que mesmo a pessoa mais íntegra, bondosa e pura da
Terra, vez ou outra, pode sentir uma pontada de inveja, mesmo por
motivos bobos, de outra pessoa, e saudade de um tempo em que era mais
bonita e mais nova. E, aqui entre nós, a velhinha de 96 anos que
mencionei não estaria assim diante de um motivo tão bobo e, além de
tudo, teria todo o tempo da Eternidade para ser abordada por aqueles
sentimentos mundanos.
Logo,
começamos a concordar que quem habitará o Paraíso terá seu corpo de
volta, mas terá algumas partes do seu cérebro modificadas, apagadas ou
seja lá o que Deus tenha que fazer para que aquela velhinha não venha a
ficar aborrecida com a má sorte de, por ter vivido 96 anos na Terra, ter
que carregar, por toda a Eternidade, um corpo murcho, enquanto umas
tantas fulaninhas tiraram a sorte grande porque viveram só uns 17 anos e
vão desfrutar, para sempre, de um corpinho perfeito. Se Deus não
atentou ainda para esse detalhe, acho bom alguém mandar-lhe um e-mail,
pois eu me atrevo a dizer que conheço um pouco as mulheres e isso poderá
ocorrer sim, caso nada seja feito.
Sendo
a alma feminina eterna, como se supõe que sejam todas as almas, esse
resquício de despeita terrena entrará com Elas no Paraíso e Deus,
certamente, terá problemas de novo.
Será que ele já se esqueceu de Eva?
‘
‘
Bom,
uma vez que o sexo é sempre encarado com restrições (quase um tabu)
pelas religiões aqui na vida pré-Juízo Final, eu posso supor que as
coisas não irão mudar no Paraíso. Claro, deixemos o Islã de fora desse
raciocínio, pois Alá reserva 72 virgens para os que morrerem mártires,
ou seja, aqueles que passarem toda a vida se policiando para não terem
nem mesmo pensamentos impuros acerca do corpo feminino — motivo pelo
qual as mulheres dos países muçulmanos têm que se cobrir da cabeça aos
pés — e tiverem a sorte de, ainda virgens, morrerem numa situação
gloriosa, tal como tentando atravessar um arranha-céu com um avião de
passageiros. Esses sim poderão desfrutar de um bacanal eterno no
Paraíso. A menos que Alá esteja aplicando uma pegadinha divina, tipo:
quando o mártir chegar no Céu ele diga: “A única restrição que imponho é
que todas as 72 continuem virgens. Em todos os sentidos e
possibilidades…”
Mas
em se tratando das religiões cristãs, creio que vale meu argumento de
que o sexo no Céu será proibido, visto que os representantes de Deus
quase que querem proibi-lo já aqui na Terra. Assim eu suponho que o
corpo físico que viverá a Vida Eterna não terá mais essa necessidade
humana, e estendo o raciocínio para concluir que também não terá uma
série de outras necessidades, porque seria muito esquisito imaginar uma
CEASA ou um sistema de esgoto no Paraíso. Então, já que as pessoas não
terão essas necessidades físicas, qual a finalidade de viver eternamente
com esse corpo físico? Por que carregar uma carcaça material se você
não vai poder usá-la?
O
quê? A minha leitora religiosa pensou em “perfeição”? Seria o máximo de
perfeição viver para sempre com um corpo físico que nunca morreria, nem
sentiria dor, nem nenhuma necessidade física? Será que ela estaria
esquecendo dos bebezinhos engatinhando no Paraíso, sem a menor noção de
onde estão nem do que está acontecendo, precisando eternamente de alguém
para cuidar deles e servindo apenas de enfeites, de bichinhos de
estimação? Ou da nossa beata de 96 anos que estaria começando a ter
saudade do corpinho que tinha quando jovem, que bem que poderia estar
com ela, como aconteceria de estar com as ninfetinhas que ela veria por
lá? Isso seria o seu modelo de perfeição? Para mim, seria um modelo de
‘nonsense’. Isso não faz o menor sentido.
Daí
alguém poderia argumentar que o raciocínio estava errado desde o
começo: o Paraíso será habitado pelos espíritos apenas, não pelos corpos
físicos das pessoas salvas. O Inferno sim, mas aí é porque os
condenados precisariam sofrer as torturas eternas que o Todo-Bondoso
Deus preparou para eles.
Nesse caso, então, teríamos que o Céu seria habitado apenas por espíritos, certo?… Certo???
Tá.
Mas você, por acaso, não estaria esquecendo que os espíritos dos que
forem salvos teriam que dividir, assim, o Paraíso com Jesus, Maria, sua
mãe, e o profeta Elias, então os únicos com corpos de carne e osso como o
meu e o seu? Jesus subiu ao Céu com seu corpo físico e Elias foi
arrebatado, tudo segundo a Bíblia; Maria ascendeu ao Céu segundo o dogma
católico. E faltou mencionar, claro!, o Espírito Santo que é,
logicamente, espírito, e, por fim, Deus, que pode ser matéria e
espírito, fazendo a ponte entre esses dois mundos, essas duas dimensões
assim criadas: a dos corpóreos e a dos antimatéria. Nossa, que salada!
De
um jeito ou de outro, a coisa toda ainda fica com cara de puro
‘nonsense’. E para quem ainda não entendeu, em bom português, ‘nonsense’
é uma estória sem pé nem cabeça!
‘
Depois do Juízo Final, as pessoas ainda terão livre-arbítrio?
Foi
por ter livre-arbítrio que Eva resolveu dar ouvidos a Satanás e não a
Deus acerca de provar do fruto proibido. Foi por ter livre-arbítrio que
Adão resolveu dar ouvidos a Eva e não a Deus sobre o mesmo assunto. Essa
desobediência em série deixou Deus tão contrariado que os dois foram
expulsos do Éden. Veja você: os primeiros seres humanos, recém-saídos do
forno, com o barro ainda quentinho, já usaram a prerrogativa do
livre-arbítrio para fazer bobagem, causando problemas a si próprios e
deixando Deus estressado. Ele deve ter, já por essa época, visto isso
como um mau presságio.
Foi
se valendo do livre-arbítrio que os humanos que vieram depois de Adão e
Eva cometeram e acumularam tantos pecados que Deus achou por bem
recomeçar a humanidade praticamente do zero, e inundou toda a Terra com o
dilúvio. Mas não adiantou nada. As pessoas continuaram a usar seu
livre-arbítrio para cometerem mais e mais pecados a tal ponto que Deus —
já percebendo que teria que continuar, talvez para sempre, com esse
negócio de genocídio (o que não seria nada bom para a sua reputação) —
acabou por bolar um plano maluco pelo qual, gerando um filho numa mortal
para que fosse barbaramente torturado e morto depois que sua
paternidade divina fosse revelada, todo mundo tivesse um tipo de
salvo-conduto contra despejos e dilúvios até o dia do Juízo Final.
Mas e depois?
Porque,
se você pensar direito, um ser humano com livre-arbítrio no Paraíso não
seria em nada diferente de um ser humano (ou dois) com livre-arbítrio
no Jardim do Éden. Essa concessão divina não deu certo lá, não deu certo
na Terra e nada garante que vá dar certo no Paraíso. Será que Deus
insistiria em deixar sua obra-prima com esse privilégio e correria o
risco de, depois, precisar inundar o Céu, ou fazer um “Juízo Final 2 — A
Missão” ?
Então ficamos com isso: ou os habitantes do Paraíso terão ainda a prerrogativa do livre-arbítrio ou não terão.
Se
não tiverem, você terá que concordar comigo que o Céu não é lugar para
seres humanos; no máximo, versões robotizadas daquilo que nos
acostumamos a chamar de pessoas. Se você se considera um dos que serão
salvos, o que quer que chegue de você lá para lhe representar como
membro da Eternidade, seja o que for essa nova criatura, meu amigo,
minha amiga, ela não será você.
Se
sim, se todos os salvos que habitarão o Céu puderem decidir o que fazer
e o que não fazer, você vai precisar mudar a sua ideia do que seja
Paraíso porque, muito provavelmente, será um lugar propenso a conflitos,
intrigas, delitos, dissidências e tudo o mais com que estamos
acostumados por aqui. E não adianta querer me lembrar que Deus estará no
comando porque serei obrigado a lembrá-lo de que ele também estava no
comando no Jardim do Éden…
E olha que lá eram só dois para ele tomar conta.
‘
Supõe-se
que Deus seja onisciente. Sendo assim, eu posso afirmar que, um segundo
antes de ter estalado seus dedos para dar início à Criação, Deus já
sabia que tudo daria errado. Ou seja, que Adão e Eva o desobedeceriam no
Éden; que toda a raça humana teria a mácula do pecado original; que
teria que afogar quase todos os seres vivos da Terra; que precisaria
enviar Jesus Cristo para nos absolver do pecado; que haveria um Juízo
Final e que uma grande parcela dos seres que ele estava prestes a criar
iria sofrer torturas eternas no Inferno. E mesmo assim ele continuou.
Estalou seus dedos divinos e deu início ao processo.
Se
eu soubesse que algo que fosse fazer não iria dar certo e o fizesse
assim mesmo, aposto que você poria a culpa em mim pela minha obra mal
feita, não na obra em si. Por que ninguém aplica o mesmo princípio a
Deus? Ora, porque ele nos deu livre-arbítrio. A culpa não é dele pela
coisa toda ter desandado.
Discordo
desse raciocínio. Ele sabia que sua obra iria incluir um Juízo Final e
que pessoas iriam para o Inferno; e se iriam para o Inferno por causa do
livre-arbítrio ou o que quer que fosse, ele também saberia o motivo. O
fato é que ele não se importou com isso. Criou tudo assim mesmo.
Já
me lançaram o contra-argumento de que se eu for para o Inferno será
porque eu “quero”, pois, para ser salvo, bastaria “aceitar Jesus
Cristo”. Simples assim. Mas não é essa a essência da minha proposição
inicial. O que estou querendo que você entenda é que, independente de A
ou B aceitar ou não Jesus e, devido à sua decisão, ir para o Céu ou para
o Inferno, consumado o Juízo Final, pessoas serão salvas e pessoas irão
para o Inferno. Meu argumento é o de que Deus sabia disso e não viu
nenhum problema.
Como se ele tivesse pensado:
É…
no fim das contas, só as Testemunhas de Jeová habitarão comigo o
Paraíso pós-Juízo Final. Tudo o mais vai ter que ir pro incinerador… Mas
que se dane! Lá vai.
– Pluft!
Então
eu só poderia concluir que Deus estava interessado apenas na parcela de
sua obra que seria salva. Ele criava uma coisa que sabia que iria se
estragar em parte, mas dava-se por satisfeito com a parte que poderia
aproveitar. E Deus moraria com eles no Paraíso pela Eternidade. Gente
escolhida a dedo, que o amou, que dispôs do livre-arbítrio para seguir
seus mandamentos. Ou seja, gente de confiança. Enfim, companhia.
Gênesis, capítulo 1, versículo 0:
“Deus,
de saco cheio de sua completude, da vacuidade do Nada e de não ter o
que fazer nem com quem conversar, resolveu acabar com sua solidão.”
‘
Imagine que tudo já foi consumado e você foi salvo. Meus parabéns! Bem-vindo à Vida Eterna.
Mas e agora? O que você acha que fará no Paraíso?
Se
você me disser que vai passar toda a Eternidade com a bunda numa nuvem
tocando harpa para Deus, eu lhe asseguro que, talvez muito antes de
passar o primeiro bilhão de anos, você irá se pegar pensando algo como:
“O que será que as pessoas estão fazendo no Inferno…?”
Se
os religiosos supõem que os que forem salvos estarão vivos na
Eternidade, é de se esperar que eles “façam” alguma coisa lá para que
possam receber o adjetivo de “vivos”. E se eles ainda conservarem seus
cérebros humanos, mesmo que numa versão atualizada do software, devo
supor que essa alguma coisa deva ser “prazerosa”. Então, o que essas
pessoas terão para fazer durante toda a Eternidade? para ocuparem suas
mentes, suas vidas? num lugar onde tudo será perfeito, sem necessidades,
sem desafios, sem preocupações, sem problemas?
Eu
não sei. E você, religioso ou não, também não sabe, como também não
sabiam nenhum dos autores do livro sagrado dos cristãos. Por isso que
tavez você só encontre na Bíblia referências ao Paraíso e à Vida Eterna
na mesma configuração que o Chapeleiro Louco apresentou sua condição à Alice,
ou do modo como uma leitora comentou um texto meu publicado na semana
passada em que dizia que com os salvos seria assim, e com os condenados
seria assado (eita! meu primeiro trocadilho): algo estático, que só faz o
mínimo de sentido enquanto ninguém resolver pensar a respeito.
Paulo,
em II Coríntios, começou de forma bastante interessante o capítulo 12
prometendo que iria passar a discorrer sobre “visões” e sobre
“revelações” do Senhor acerca de um homem (supõe-se que estivesse
falando dele mesmo) que fora arrebatado ao Paraíso, mas, talvez tendo
esbarrado naquelas mesmas perguntas e concluído que não conseguiria
inventar nenhuma resposta satisfatória que não estragasse seus textos,
esperou apenas 3 versículos para dizer que não era lícito contar tais
coisas ao homem (12:1-4). E a história seguiu por outro caminho. Alguém
aí lembrou-se de Alice de novo?
Mas
é fácil entender por que não podemos lidar com a Eternidade. Nossos
cérebros, pelo pouco que o conhecemos hoje, evoluíram para “funcionar”
em função do tempo. Praticamente tudo o que fazemos tem uma data para
começar e uma expectativa de fim. Mesmo que não demos conta disso, o
nosso cérebro trabalha com um “relógio interno”, igualzinho aos
computadores, e todos têm a mesma frequência, já que a expectativa de
vida humana, na melhor das hipóteses, gira em torno de um século. As
nossas ações são cronometradas por esse “clock”.
Se
eu estou estudando russo uma hora por dia durante cinco dias por
semana, meu cérebro projeta uma estimativa de que eu atinja um nível
intermediário no domínio desse idioma para daqui a, digamos, três anos,
com uma possível data para terminar meu curso para daqui a, espero, seis
anos. Caso eu quisesse antecipar minha viagem à Rússia em pouco mais de
uma década, precisaria estar falando russo dentro de quatro anos, o que
me obrigaria a aumentar meu ritmo de estudo. Isso tudo porque sei que
tenho menos de um século de vida. Mas se eu disser para o meu cérebro
que eu disponho de toda a Eternidade para aprender, ele não vai saber o
que fazer: estudar russo uma hora por dia, ou uma hora a cada trilhão de
anos, ou a cada sextilhão de séculos? Na Eternidade, não vai fazer
diferença. Mas meu cérebro precisaria de uma resposta antes de começar a
tarefa porque é assim que ele trabalha. E como eu não teria, acho que
ele iria “travar” exatamente como os computadores travam.
Então,
ficamos com isso: não dá para racionalizar o que as pessoas terão para
fazer e ocuparem suas “vidas” na Eternidade porque os nossos cérebros
não estão “configurados” para trabalhar (mesmo hipoteticamente) com a
noção de tempo infinito. E se a gente forçar muito ele vai travar. Já se
você disser que a Vida Eterna será uma vida completa em si mesma,
perfeita, repleta de glória e exaltação ao Senhor, será o mesmo que não
dizer nada; uma tentativa tola e infantil de querer aparentar saber a
resposta quando, na verdade, se é tão ignorante quanto qualquer um sobre
o assunto. Acho que essa é a maneira que os religiosos encontraram de
pular todo o processo de racionalização — que, como vimos, não adiantou
nada mesmo nesse caso — para poderem ir, sem demora, para a parte do “Se
você não aceitar Jesus, irá para o Inferno”.
Isso
só me faz pensar que os escritores sagrados, embora não tendo
conseguido responder aquela mesma pergunta sobre o que as pessoas vão
ter para fazer na Vida Eterna, pelo menos, encontraram uma maneira bem
eficaz de fazer seus leitores acreditarem nela assim mesmo: a coação.
Assim
sendo, você pode, como eu, ignorar essa ameaça (também sem fundamento) e
entender a Vida Eterna do mesmo modo como você entende o País das
Maravilhas de Alice. A outra opção seria acreditar nela porque um livro
muito antigo, escrito por várias pessoas que viveram numa época de
superstição e ignorância muito maior do que as da nossa, diz que ela
existe. Mas você teria que acreditar cegamente nisso, ou seja, sem
racionalizar.
Ou isso, ou Ctrl Alt Del.
‘
Na Eternidade, as pessoas lembrarão da sua vida passada? Lembrarão quem foram? Lembrarão da Terra?
Eu
digo a você, com toda a sinceridade, que se eu fosse salvo, por melhor
que se me apresentasse o Paraíso e por pior que a vida neste planeta, às
vezes, pareça ser, eu levaria boas lembranças daqui. Muitas coisas eu
faria questão de lembrar, e teria saudade de outras tantas. E acho que o
mesmo se aplicaria a você.
Mas será que isso seria assim? Será que seria “permitido”?
Será que as pessoas no Paraíso teriam, pelo menos, a memória da vida
terrena preservada? Será que poderiam ter saudade de certas coisas, de
lembranças boas, de amores adolescentes, de aventuras, de lugares?
Eu também não sei responder essa; nem você sabe, nem o papa, nem ninguém.
Mas
ora!, até aqui, nós só podemos dizer que esse processo de
racionalização só nos deixou com mais dúvidas — em número e qualidade —
do que as que tínhamos inicialmente sem fazer nenhuma pergunta. Só dá
para concluirmos que sabemos agora muito menos do que antes, o que não
ajuda em nada nem nos leva a lugar algum, certo?
Errado.
Houve
um tempo em que as pessoas acreditavam que a Terra era plana — porque
parece ser plana — e que era o centro do universo com o Sol e a Lua
girando ao redor e as estrelas coladas num teto celestial — porque é
assim que parece. Quando o ser humano, por seu próprio esforço e
competência, vislumbrou o que estava além das aparências, deparou-se com
uma infinidade de outras perguntas.
Uma
Terra redonda, infinitesimal, vagando num espaço repleto de outros
mundos, outras luas, outros sóis, com uma infinidade de galáxias,
acenava com a desconcertante conclusão de que a fração microscópica de
conhecimento que ele havia tão trabalhosamente adquirido só serviu para
aumentar, na razão inversa, a sua própria noção de quanto era ignorante.
Mas
todas essas novas dúvidas trouxeram de bônus uma assombrosa certeza que
nenhum cientista, nenhum sábio, nenhum filósofo, nem eu, nem você, nem
ninguém jamais deveria pensar em recusar:
Eu sou ignorante acerca de um Universo muito, mas muito maior do que eu imaginava!
‘
“Qual
a coisa mais importante da vida? Uma pessoa com fome diria: ‘o
alimento’. Uma pessoa com frio diria: ‘o calor’. Com todas as suas
necessidades atendidas, o ser humano precisa de algo mais. Os filósofos dizem que precisamos saber quem somos e a razão da nossa existência.” (do livro O Mundo de Sofia)
Mas
existe entre nós uma grande parcela de seres humanos que não precisam
mais perder tempo com essas filosofias… Eles já têm as respostas. Todas
elas. E mesmo se — ou quando — a resposta não parece, efetivamente, uma
resposta, ele continuará crendo que ela está ali, no seu livro sagrado,
escrito pelo ser supremo que criou tudo: ele pensará que apenas não
consegue endentê-la ou identificá-la.
O
crente crê. No meu Houaiss (uáis) mastodôntico, a única acepção desse
verbo em que ele é plenamente intransitivo está sob a rubrica Religião,
com o significado de “ter fé”. Essa intransitividade exclusiva confirma
para o crente o que lhe ensinam desde o berço: crer, apenas, basta. Nem
mesmo a gramática exige um complemento. Por que, então, pedir
explicações?
O crente crê na Vida Eterna. E o verbo transitivo, além do objeto indireto, pede indiretamente
uma quantidade infinita de fé. Mas isso ele tem, porque ele quer o
Paraíso, embora não entenda nem possa entender o que seja isso. Ele não
sabe se haverá, realmente, uma Vida Eterna; por isso ele crê. Crer
significa ter fé, e fé significa ser ignorante sobre algo, porque se
você não fosse ignorante, se você soubesse, não precisaria acreditar.
Eu
poderia escrever que a ignorância é a fonte de todas as perguntas, mas
as religiões ensinam que o bom crente é o que acredita sem questionar, e
que, quanto mais absurdo for aquilo em que você acredita sem fazer
perguntas, mais merecedor da Vida Eterna você será. Um engodo que,
segundo Richard Dawkins, é um dos mais devastadores efeitos da religião
para o cérebro humano: “ensinar que é uma virtude ficar satisfeito em
não entender”.
O
crente não entende nem o Paraíso nem a Eternidade, mas quer passar a
Eternidade no Paraíso. Ele não sabe se terá livre-arbítrio no Céu, nem
se terá necessidades, vontades, desejos; não sabe como será viver lá, o
que vai fazer, se será realmente uma “vida”; ele não sabe se será ele
mesmo que vai estar lá, se terá memória da vida que passou na Terra, ou
se vai precisar passar por uma lavagem cerebral; não sabe se vai viver
com seu corpo físico ou apenas em espírio. Nesse caso específico, o
livro sagrado fala em corpo glorificado, o que dá no mesmo para mim: não
responde nada.
Mas
eu sou ateu. Existe um ticket de entrada para o Inferno com meu nome
impresso em maiúsculas. Deus sabia disso já um segundo antes de estalar
seus dedos mágicos. Ele não deve ter se importado, depois, em escrever
nada nesse livro para me responder o que quer que fosse.
Se
Deus existe e eu for parar no Inferno, é porque eu sou parte da sua
obra que não deu certo. Uma prova viva e incômoda da sua imperfeição e
incompetência divinas. Alguém que se atrevesse a dizer tal coisa; alguém
que se prestasse a racionalizar algo que deveria ser aceito sem
questionamentos e acabasse por concluir que Deus estava mesmo só cansado
da solidão; alguém que desconfiasse que Deus, sabendo-se Todo-Poderoso,
resolveu criar uma raça terrena de semi-iguais apenas para ter para
quem se exibir não mereceria mesmo nenhuma consideração ou idulto.
Fico
muito lisonjeado em pensar que, antes do primeiro dia da Criação, antes
de detonar o Big Bang, Deus tenha pensado em mim, mesmo que tivesse
sido algo como:
Barros, não considero você uma boa companhia nem para um fim de semana, quanto mais para a Eternidade… Você vai para o Inferno.
–
Senhor Deus, isso é “queima de arquivo”. Uma atitude típica de um
criminoso, ou, ao que parece, de um Deus mesquinho, exibido e
incompetente.
‘
Felizmente,
para mim, a ameaça divina que paira sobre a minha cabeça me causa tanto
terror quanto a ideia de ser mordido por um vampiro. A Eternidade, no
Inferno ou no Paraíso, é, assim como Deus, uma invenção humana e só
sobrevive por causa da fé, da vontade de querer acreditar.
As
pessoas de fé acham que entendem tudo sobre Deus e sobre a Eternidade,
mas somente enquanto não fazem (ou enquanto ninguém faz) perguntas a
respeito. Porque, então, tudo se apresentaria como um grande absurdo. E
quando surgem respostas, ou não respondem nada, ou tornam apenas o
absurdo ainda mais evidente.
Para
manterem sua fé, as pessoas religiosas precisam, a todo custo, evitar
tais ponderações. Por isso a conveniência de acreditar cegamente, e essa
cegueira as impede de admitir que o seu Deus, o Paraíso, a Eternidade,
anjos, demônios, milagres e tudo o mais, só existem nas páginas de um
livro antigo. Mas é graças a essa cegueira intelectual que elas podem
continuar acreditando e, em fazendo isso, continuar a manter Deus vivo
em suas mentes e em suas vidas, e, com ele, a esperança de viver para
sempre num mundo encantado, num País das Maravilhas, numa outra
dimensão, repleta de tudo que se possa imaginar de bom e com infinitas
possibilidades, desde poderem pisar num chão de nuvem até a chance de
terem um leão no jardim para brincar com as crianças.
A
alternativa que elas têm ao sonho encantado da Eternidade seria se
render à possibilidade sem graça de que um dia, simplesmente, vão deixar
de existir.
‘