segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

A fé atropela a lógica e a dignidade humana para enxergar o amor de seu Deus. Ignoram, porém, os crentes que, em outras catástrofes, igrejas e fiéis foram dizimados sob escombros e estátuas de santos e cristos crucificados. Alienados, ignoram que tal interpretação não faz o menor sentido, porque os mesmos crentes recitam em verso e prosa que o seu Deus, além de todo-poderoso, é onisciente. Por amnésia racional ignoram o fato de que se seu Deus sabe de tudo antes de tudo acontecer (e eles mesmos preconizam-No tamanha prerrogativa de poder), por que usaria de tão estúpido expediente para testar provações sabendo de antemão do resultado?

Agora sangremos a outra corrente, a que interpreta a ira de Deus, nesses eventos, como forma de punir pecados de suas miseráveis e frágeis criaturas. Não é preciso lembrar que o arquipélago das Filipinas está entre os maiores países cristãos do planeta. Lá a encenação realística da crucificação de seu Deus, além de identidade cultural, deixa clara a profunda manifestação de fé daquele povo. Significa que, mesmo sabendo disso, Deus não deu a mínima para a fé dessa gente ao permitir ou provocar, no caso da ira como punição, todo o sofrimento e desolação só para punir alguns adúlteros, fornicadores, homossexuais e ateus, se lá existirem, sem distinguir, por imperícia ou omissão, o joio do trigo, como recomenda no segundo livro. Nesse caso, cabe lembrar aos adeptos dessa corrente, que o seu Deus, no primeiro livro, chegou a arrepender-se de suas catástrofes humanitárias do passado a ponto de afirmar, em uma de suas sentenças, jamais voltar a punir a humanidade com tamanha força de destruição, como fizera ao dizimar Sodoma e Gomorra e ao provocar o extermínio em massa com o dilúvio.

Se deus ainda se ocupa de provocar catástrofes humanitárias aqui e ali, ou ele mentiu, o que fica feio para o seu status, ou ele revogou seu próprio decreto, o que não combina com o Deus de amor e misericórdia pintado por seus crentes.

Por estreitar o raciocínio ou reduzi-lo a um dogma de aceitação, a fé impede os crentes de enxergar que, no advento de um ser de tamanha magnanimidade, seria de esperar que sua redentora ira de incomparável grandeza fosse direcionada para impedir uma série de injustiças e monstruosidades que continuam sendo perpetradas em todo o planeta.  Em vez de manter de pé ídolos de barro, que impedisse Deus a subjugação, a vilipendiação, a humilhação, a escravização! Enquanto Deus despeja ira desmensurável e desnecessária sobre miseráveis, crianças continuam sofrendo as maiores barbáries nas mãos de predadores sexuais, muitos dos quais seus porta-vozes; pessoas continuam sendo sequestradas para terem seus órgãos arrancados por traficantes que os vendem para poderosos que ignoram a dignidade dos “doadores”, gente miserável da Índia e de outras partes da Ásia que, com o tempo e a miséria inclemente, aprenderam a negociar a própria vida vendendo pedaços de seus corpos por bagatelas com que compram o alimento que os alivia a fome. Dessa forma, vivem cativos como animais preparados para o abate, para o deleite e o bem-estar de circunspectos cidadãos devotos que se acham mais importantes do que os miseráveis, sob o olhar passivo e soberano desse Deus que nada faz.

Enquanto Deus engendrava metáforas sobrenaturais, controlando o supertufão, o mundo religioso continuava fazendo vista grossa ou mesmo financiando a miséria na África e ignorando a fome e a sede que matam crianças inocentes todos os dias.

 Há ainda, entre as várias correntes da fé, a que enxerga milagres de seu Deus no resgate desse ou daquele, no socorro impossível de um ou de outro. Estúpidos, ignoram um fato perturbador: com tamanho poder de intervenção, ao livrar apenas um ou outro da morte, Deus está a desperdiçar toda a sua onipotência, na melhor das hipóteses. Ou apenas preferindo não usá-la, mesmo podendo evitar sofrimentos desnecessários, na pior delas. Não compreendo como um Deus tão estúpido ou sádico merece adoração! O fato é que qualquer dessas hipóteses causa embaraços gigantescos para o Deus dos crentes, que, quando não está se divertindo ou despejando ira, anda todos os dias a conseguir emprego para desempregado, a curar caroços de enfermos, a doar casas e carros para quem os pede, a conquistar vitórias para esportistas crentes, e até arvora-se de cupido arrumando parceiros para crentes mal amados.

Para finalizar, não nos esqueçamos de duas outras interpretações dos crentes: a que sustenta que Deus não provoca o mal, mas sim o seu arqui-inimigo, preconizado no segundo livro dos crentes como o príncipe deste mundo; e a que encerra discussão com o prosaico: “o homem é muito pequeno para entender a mente de Deus”. À primeira, respondo: com um inimigo desse, não há amigo que nos vingue. À segunda, deixo a pergunta: se não temos capacidade para entender as mensagens de Deus, por que ele insiste nelas?


CARLOS TAVARES – jornalista
Direto do Deusilusão.

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