Hermenêutica & Exegese
Por Shirley S. Rodrigues Direto do http://deusilusao.com/
Uma das coisas que mais aborrecem o
crente cristão é ser confrontado com as práticas brutais e/ou insensatas
constantes em muitas passagens do Antigo Testamento, principalmente.
Perguntados, por exemplo, se consideram
certo que Deus tenha ordenado o apedrejamento de adúlteros (Levítico,
20:10); ou se é procedente a orientação de não tocar em mulheres no
período menstrual (Levítico 15:19); ou se Deus estava sendo pelo menos
justo ao instruir o profeta sobre a forma de se tratar os escravos
(Êxodo 21:21), visto que a prática da escravidão deveria, por sua
própria natureza, ser terminantemente proibida por Deus, o crente
minimamente instruído irá se irritar e responder que para tais questões é
necessário levar em conta a exegese e a hermenêutica. E o fará com
aquela expressão que diz: pensa que sabe de tudo, é? Com isso entenderá
que respondeu magistralmente a questão e esperará que o interlocutor
sinta-se encurralado.
Interessante notar que não serão poucos
os que se deixarão intimidar, ao menos momentaneamente, por esse
argumento enganador. Por que é enganador? Porque Deus é perfeito. A
perfeição divina é a pedra angular da fé. Ou é o que alegam as religiões
cristãs.
Nem mesmo o argumento do amor divino tem
o status do argumento da perfeição divina. Quando se propõe que um
crente considere o amor divino como real, tendo em vista o sofrimento de
seus ‘filhos’, ele, crente, não se incomoda com a contradição. Afinal, o
amor de um pai, por incondicional que seja, está sujeito ao
comportamento do filho, isto é, um pai não poderá proteger seu filho de
tudo e de todos, não raro de si mesmo, todo o tempo. De modo que esse é
um argumento que encontra eco na experiência do crente enquanto ser
humano, podendo então ser racionalizado.
Já a perfeição divina, esta, por
paradoxal que seja diante dos fatos constantes na existência humana, é
argumentação definitiva; é definitiva, novamente de forma paradoxal,
porque o ser humano está sempre agudamente cônscio de sua própria
falibilidade. Necessita desse porto seguro, de contar com alguém que é
perfeito e em algum tempo e lugar resolverá de forma ideal todas as
questões inerentes à condição humana.
É amparada na concepção da perfeição
divina que a religião cristã em suas variadas confissões se sente
autorizada a cooptar fiéis, pois é portadora da palavra divina; é
amparada nessa concepção que a religião se permite determinar
comportamentos e condutas como certos ou errados, interferindo também no
comportamento e conduta de quem não professa a religião; é também a
proverbial cenoura na frente do burro.
Dessa forma, no momento em que alguém
alega a necessidade de interpretação e contextualização dos textos
bíblicos, está agindo de forma enganadora. Ou Deus é perfeito ou não é. A
hermenêutica e a exegese podem ser aplicadas a tudo, menos a Deus e sua
palavra, a Bíblia. Se ele é perfeito, não pode haver dúvidas sobre o
que quis dizer; nem mesmo se poderia argumentar, in extremis, que o veículo usado para expressar essa palavra ou entendeu mal ou exorbitou.
Sendo Deus perfeito, numa questão
fundamental como seria transmitir suas orientações aos seus ‘filhos’,
ele não poderia permitir engano de espécie alguma. De maneira que, se
era válido apedrejar adúlteros milênios atrás, tem que continuar sendo
válido hoje. Se ofendia o todo-poderoso, há dois, três mil anos, que
seus ‘filhos’ trabalhassem no dia a ele dedicado, continua a ser
ofensivo hoje. Ou é assim, ou Deus não sabe o que faz, ou não tem
certeza do que faz; se assim é, ele não é perfeito.
Qualquer pessoa disposta a realizar esse
exercício de pensamento com um mínimo de honestidade chega a essa
conclusão, tão simples. Qualquer pessoa disposta a passar por cima da
coerência e da honestidade em nome da fé, usando o argumento da
necessidade da interpretação e contextualização, é um trapaceiro
intelectual e nem mesmo a fé justifica tal coisa.
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