Fonte: Montando o Quebra-Cabeça
Para muitas pessoas, a proposição “Eu nego a existência de deuses” pode suscitar espanto. “Como assim… você não acredita em nada?” Na verdade, parece melhor redefinir aquela proposição para “Eu creio que deuses não existem”, mesmo que isso ainda não resolva o problema em questão. Afinal, em que crê e o que faz quem não acredita em deuses? Temos uma noção básica do que creem e fazem judeus, budistas e cristãos, mas o mesmo pode não ser dito a respeito dos ateus. Pode ser tentador definir o ateísmo como a ausência de comportamentos ligados à religiosidade. Mas, se não fazer algo já é fazer alguma coisa, é a esse “fazer diferente” que precisamos nos atentar. O ateu não fica simplesmente inerte, parado em feriados religiosos, e não fica sem reação quando coisas inusitadas ou adversas acontecem. Como disse o biólogo Paul Z. Myers (2011), o ateísmo não é “um ideal platônico flutuando em um espaço virtual com nenhuma conexão com mais nada”. Crenças não fazem sentido sem que sejam associadas a comportamentos públicos, e parece razoável dizer que o ateísmo é uma crença.
Nossos comportamentos são
contextualizados, e há contextos específicos em que o comportamento
religioso aparece. Não: as pessoas não são ininterruptamente religiosas!
O comportamento religioso aparece e desvanece conforme variam as
situações. Por exemplo, somos religiosos quando, ao sermos exitosos ou
ao fracassarmos, agradecemos às divindades ou nos colocamos a orar;
quando beijamos estátuas que representam santos; quando procuramos nos
unir, através da meditação, ao Cosmos; quando baseamos nossas ações nas
prescrições de um livro considerado sagrado; e quando concebemos o mundo
como um desígnio divino. Contudo, os religiosos também se envolvem em práticas seculares,
isto é, em práticas em que não há o matiz religioso. Exemplos dessas
atividades são estudar matemática, comer pastéis e beber Coca-Cola,
fazer transações bancárias, pegar um ônibus e acompanhar jogos de
futebol. Embora certas práticas sejam ocasionalmente permeadas pela fé
(como quando oramos para que nosso time vença), isso não é o bastante
para denominá-las religiosas.
Parece
difícil a tarefa de delimitar o perfil comportamental básico de um ateu,
mas acho que podemos, senão devemos, nos arriscar. Antes de fazê-lo,
descreverei alguns atributos que não definem, mas que parecem acompanhar o ateísmo.
Os
ateus, ao menos os que eu conheço, são pessoas razoavelmente
desconfiadas. Eles estão frequentemente atentos a incoerências ou a
afirmações pouco fundamentadas, carentes de evidências, e não tomam
certas afirmações como verdadeiras simplesmente por terem sido
proferidas por autoridades (por exemplo, por pais, professores e líderes
religiosos). Essa sensibilidade costuma levar ao questionamento e a uma
postura crítica. Em essência, eu diria que o ateu se comporta com base
na ideia de que o outro pode estar enganado ou pode querer
enganar. Mas, e como no caso dos religiosos, esse perfil não está
presente em qualquer situação. Há quem possa deixar de lado o “filtro do
ceticismo” ao se deparar com notícias ou artigos científicos, sobretudo
quando se tratam de algo que se queira ouvir. Os ateus são, antes de
tudo, humanos.
Esse tópico é um tanto
polêmico, mas eu intuo (tudo bem, com base em alguns estudos
científicos) que o ateísmo é regado por um bocado de inteligência. A
origem do Universo e das espécies, o sentido da vida e as questões
morais são alguns dos temas importantes a ser abordados secularmente
pelos ateus. Não é tarefa fácil compreender satisfatoriamente o big-bang
e a seleção natural, e o convívio com religiosos pode exigir dos ateus
um repertório básico de lógica, psicologia e história. A sustentação
adequada do ateísmo parece requerer um esforço intelectual
incomum, mesmo que isso não se traduza necessariamente em uma
“inteligência incomum”. Uma parcela considerável dos ateus que eu
conheço valoriza o conhecimento, para não dizer a racionalidade, e se esforça para conhecer cada vez mais.
Desconfiança e esforço intelectual
talvez sejam perfis comportamentais comumente encontrados entre os
ateus.(1) Se, pelas circunstâncias da vida, aprendemos a desconfiar (ou a
ser céticos), a nos perguntar e a investigar, há uma grande chance de
nos depararmos com o ateísmo. Com efeito, o ser ateu pode ser
um subproduto emergente daquelas posturas, mas que só vem a irromper em
contextos em que há um apelo social por intervenções e explicações
sobrenaturais sobre o mundo. Se não houvesse o comportamento religioso,
talvez não faria sentido falar de comportamento ateísta. Não há
religiosidade entre os demais animais, e não é por isso que os chamamos
de ateus. Por isso, o ateísmo é um conjunto de posturas que se distingue
pela busca de interpretações e explicações naturais para
eventos que, entre os religiosos, são frequentemente interpretados e
explicados pelo poder e desígnio divinos, que são sobrenaturais. O ateu
pode não negar que há mistérios e eventos difíceis de ser explicados no
mundo, mas não faz disso um motivo para inventar deuses. Sob um prisma
moral, eu diria que saber conviver com a dúvida é uma virtude.
Ser
ateu, enfim, é resistir ao ímpeto de criar ou invocar entidades
superpoderosas, os deuses, para explicar ou alterar os fenômenos do
mundo; em vez disso, é dar prioridade à formulação de hipóteses
naturalistas, bem como a se comportar como se as coisas não fossem
permeadas por forças mágicas ou divinamente caprichosas. O ateísmo não é
simplesmente a ausência de crenças em divindades, mas um conjunto de
crenças e posturas que fazem a diferença.
Definir
o que se quer dizer com “ateísmo” pode ser uma tarefa mais difícil do
que parece à primeira vista. Se nos restringimos à etimologia, podemos
ficar confusos quanto ao que significa aceitar ou negar
a existência de deuses. Por isso, torna-se fundamental fazer menção a
práticas e ideias que acompanham ou constituem certas crenças. Tal como
há variações marcantes em como as pessoas aceitam a existência de
deuses, decerto há variações no ser ateu. Sugeri alguns padrões de
conduta que são frequentes entre os ateus que eu conheço, e tentei, com
algum custo, definir em poucas palavras o que eu entendo por “ateísmo”.
Não quero pensar que minhas sugestões e definição são definitivas;
espero que colegas possam me ajudar a ajustá-las ao longo do tempo.
Ao
final, arrisquei-me a falar sobre a páscoa e sobre como um ateu poderia
lidar diante dessa ocasião. Devo ressaltar que aquele trecho não se
tratou de prescrições, mas de sugestões ou possibilidades de ação que
vislumbrei a partir de experiências próprias, de relatos de alguns
colegas e de leituras que fiz. Ateus não precisam se posicionar a favor
do aborto, do casamento homossexual e da abolição de crucifixos em
repartições públicas, e não precisam necessariamente ser delicados e
respeitosos para com os religiosos. Contudo, creio que a força de um
grupo pode crescer na medida em que certas posturas básicas são
incorporadas. Não estou certo sobre que posturas seriam essas, mas
desconfio que o ceticismo e o humanismo são bons candidatos.
Você é ateu — orgulhe-se daquilo em que você acredita, e não daquilo em que você descrê. E, também, aprenda a respeitar o fato de que as pessoas com ideias contrárias às suas não chegaram a suas conclusões em um vácuo. Na verdade, há motivos mais profundos para elas endossarem tão veementemente entidades sobrenaturais, e tais razões nem sempre podem ser reduzidas à estupidez (Myers, 2011).
Nenhum comentário:
Postar um comentário