quinta-feira, 10 de outubro de 2013

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A lembrança mais forte que tenho do período em que estava sendo doutrinado para me plugar à Matrix é a da representação artística do Paraíso impressa na capa de uma revista chamada A Sentinela, mantida e publicada pela religião denominada Testemunhas de Jeová. Era um desenho em preto e branco muito bonitinho que mostrava uma paisagem com montanhas ao fundo e com um terreno levemente ondulado em primeiro plano, gramado, cheio de árvores e de flores, com dois casais, um de adultos e o outro de idosos, sorrindo enquanto olhavam duas criancinhas afagando a juba de um enorme leão.
Não lembro quem me explicou que aquilo era o Paraíso, mas lembro que me disse que era um lugar muito bonito, onde sempre era dia, com um clima eterno de primavera; onde as pessoas estariam sempre sorrindo, sempre felizes; onde não haveria nenhum sentimento ruim, nem dor, nem morte, e até mesmo onde as feras seriam como bichinhos de estimação.
O meu cerebrozinho infantil ficou fascinado com aquilo. Claro que ficou. Os religiosos usam, mais ou menos, as mesmas técnicas que os pedófilos para seduzirem as crianças, só que o abuso que eles cometem, geralmente, se restringe ao nível mental.
Mas o caso é que a ilusão da Vida Eterna é algo muito próximo daquela cena do chá do livro As Aventuras de Alice no País das Maravilhas. Alguém apresenta um tipo de situação que só faz o mínimo de sentido se você considerar apenas aquele momento, como quando eu olhei o desenho a primeira vez, sem se preocupar com passado e futuro, com causa e efeito, e, mais importante de tudo, sem fazer perguntas.
A ideia da Vida Eterna desmorona por completo ao som de frases que terminam com um ponto de interrogação.
Talvez por isso mesmo que eu posso quase apostar que o crente comum não conseguirá lembrar de ninguém discutindo o assunto; como não conseguirá lembrar de nenhum livro, nenhum filme, nenhum sermão, nenhuma comunidade no Facebook falando sobre a Eternidade, sobre a Vida Eterna. Sou capaz de apostar que ele nunca se pegou pensando nisso, nunca parou para racionalizar o que seria viver para sempre; nunca tentou se imaginar vivendo no Paraíso, no lugar que espera ter como prêmio o direito de morar depois de morto, e pelo que pauta toda sua vida.
Não é algo um tanto quanto estranho? Viver uma vida toda sob regras rígidas para alcançar a graça, o direito, a recompensa de ir para um determinado lugar sobre o qual nunca se pensou a respeito, tendo-se, no máximo, uma ideia estática do que seja esse lugar, como uma visão de um desenho numa revista? Você passaria 10 anos que fosse da sua vida trabalhando de sol a sol para conseguir economizar dinheiro para comprar um apartamento do qual você não sabe nada, nem nunca procurou saber, e do qual só viu um desenho em preto e branco? Provavelmente não. Mas os crentes agem assim. Eles querem morar no Paraíso, mesmo nunca tendo parado para pensar sobre o assunto, sobre como será viver lá. Claro que eles não estão com nenhuma pressa e, se são acometidos de alguma doença que pode se complicar e levá-los à morte, e, portanto, mais rapidamente para o Céu, eles, como todos nós, tratam de adiar essa viagem.
Se eu pudesse voltar no tempo para encontrar de novo aquela pessoa que me explicou o que era o Paraíso, eu gostaria muito de pedir para ela responder umas poucas perguntas que aquele mesmo cérebro que ela estava, então, seduzindo, acabou por formular depois que se tornou imune às investidas desses abusadores infantis. Serão esses questionamentos que eu vou passar a expor nos textos que seguem.
Eu vou fazer algo que, se não fosse surtir justamente o efeito contrário por atiçar a curiosidade das pessoas, o papa faria questão de proibir:
Eu vou racionalizar a Eternidade.


Eu acho a visão esteriotipada que as pessoas fazem da Vida Eterna algo muito engraçado, para não dizer ridículo. Supõe-se que, na Eternidade, a vida será sempre vivida ao ar livre, numa eterna manhã primaveril de domingo, onde as pessoas andarão sorrindo para o vento, vestidas em camisolões folgados de cores claras, descalças, pisando num chão de nuvem, ou num chão de grama de um mundo-jardim, felizes da vida e sem nenhuma preocupação. Nada de contas a pagar, nem dor de barriga, nem reuniões de condomínio, nem frustrações, nem desejos, nem ambições, nem inveja, nem raiva, nem emoção, nem surpresa, nem medo, nem decepções, nem tortas de limão, nem sexo, nem tv, nem… epa!, peraí. Tem certeza de que Vida Eterna não é o mesmo que Morte Eterna? Ah, tá bom: tem diferença. Ok.
Vamos, então, fazer algo que, acho eu, você nunca havia feito antes: racionalizar a Eternidade.
A primeira coisa que preciso supor é que as pessoas entrarão na Eternidade com um corpo físico. Alguém poderia ser contrário a essa suposição, mas veja: o Inferno também faz parte da Eternidade e lá as pessoas, obrigatoriamente, terão de volta seus corpos, visto que Deus o projetou para as pessoas serem torturadas com torturas físicas. Logo, será preciso um corpo físico cheio de juntas, pontos sensíveis e com um sistema nervoso tinindo para poder dar conta de todos esses estímulos. Não dá para imaginar um espírito sentindo dor e rangendo os dentes dá? Não, não dá. Assim, admitindo-se que Deus tem sempre o mesmo peso e a mesma medida, já que uns passarão a Eternidade com o seu corpinho no Inferno, não tem por que não imaginar que acontecerá o mesmo com os que forem agraciados com o Paraíso.
Muito bem: depois do Juízo Final, os que forem salvos terão também seus corpos de volta. Mas, admitindo-se que uma beata que morreu aos 96 anos tenha tido vários corpos físicos durante a sua vida — já que ela foi um bebê, uma menina, uma moça, uma mulher adulta, uma senhora, uma velhinha —, com qual deles ela entrará na Eternidade?
Você  já havia pensado nisso?
Será  que a velhinha de 96 anos terá de volta apenas o corpo com o qual encontrou a morte? Seu “último” corpo? Assim, eu deveria supor que haverá muitas criancinhas e muitos bebês no Paraíso, ou seja, aqueles que morreram ainda bebês ou em tenra idade e foram salvos. Deve então haver algum tipo de serviço de babá no Céu? Sim, porque alguém terá que tomar conta desses bebês eternamente, pois eles morreram com corpos e mentes de bebês e vão se comportar de acordo. Aliás, o fato de estarem no Paraíso não fará a menor diferença para eles. Fará diferença apenas para os outros que poderão se distrair com as suas gracinhas. E me causa arrepios imaginar um Deus que criou uma Eternidade onde alguns dos seres que lá habitarão — no caso, os bebês — serão enfeites vivos que servirão apenas para o deleite dos outros que, por sorte, tiverem a consciência da própria existência e condição. Algo que os bebês certamente não têm e nem terão. Na Terra, isso seria apenas uma fase da vida, mas, na Eternidade, isso seria tudo que eles poderiam ser: enfeites vivos eternos.
E você  não acharia desconfortável, minha leitora, depois de ter morrido velhinha, bem velhinha, com seu corpinho decrépito, passar toda a Eternidade olhando aquelas curvas perfeitas, aquelas peles lisinhas, aqueles rostos graciosos, aqueles peitos firmes das mocinhas que morreram na “flor da idade”? Ou devo supor, também, que o corpo físico que habitará o Paraíso terá um cérebro um tanto quanto alterado, um tipo de versão atualizada do software que temos hoje, que não permitirá que as pessoas sintam certas coisas, como inveja e saudade? Você terá que concordar comigo que mesmo a pessoa mais íntegra, bondosa e pura da Terra, vez ou outra, pode sentir uma pontada de inveja, mesmo por motivos bobos, de outra pessoa, e saudade de um tempo em que era mais bonita e mais nova. E, aqui entre nós, a velhinha de 96 anos que mencionei não estaria assim diante de um motivo tão bobo e, além de tudo, teria todo o tempo da Eternidade para ser abordada por aqueles sentimentos mundanos.
Logo, começamos a concordar que quem habitará o Paraíso terá  seu corpo de volta, mas terá algumas partes do seu cérebro modificadas, apagadas ou seja lá o que Deus tenha que fazer para que aquela velhinha não venha a ficar aborrecida com a má sorte de, por ter vivido 96 anos na Terra, ter que carregar, por toda a Eternidade, um corpo murcho, enquanto umas tantas fulaninhas tiraram a sorte grande porque viveram só uns 17 anos e vão desfrutar, para sempre, de um corpinho perfeito. Se Deus não atentou ainda para esse detalhe, acho bom alguém mandar-lhe um e-mail, pois eu me atrevo a dizer que conheço um pouco as mulheres e isso poderá ocorrer sim, caso nada seja feito.
Sendo a alma feminina eterna, como se supõe que sejam todas as almas, esse resquício de despeita terrena entrará com Elas no Paraíso e Deus, certamente, terá problemas de novo.
Será  que ele já se esqueceu de Eva?


Bom, uma vez que o sexo é sempre encarado com restrições (quase um tabu) pelas religiões aqui na vida pré-Juízo Final, eu posso supor que as coisas não irão mudar no Paraíso. Claro, deixemos o Islã de fora desse raciocínio, pois Alá reserva 72 virgens para os que morrerem mártires, ou seja, aqueles que passarem toda a vida se policiando para não terem nem mesmo pensamentos impuros acerca do corpo feminino — motivo pelo qual as mulheres dos países muçulmanos têm que se cobrir da cabeça aos pés — e tiverem a sorte de, ainda virgens, morrerem numa situação gloriosa, tal como tentando atravessar um arranha-céu com um avião de passageiros. Esses sim poderão desfrutar de um bacanal eterno no Paraíso. A menos que Alá esteja aplicando uma pegadinha divina, tipo: quando o mártir chegar no Céu ele diga: “A única restrição que imponho é que todas as 72 continuem virgens. Em todos os sentidos e possibilidades…”
Mas em se tratando das religiões cristãs, creio que vale meu argumento de que o sexo no Céu será proibido, visto que os representantes de Deus quase que querem proibi-lo já aqui na Terra. Assim eu suponho que o corpo físico que viverá a Vida Eterna não terá mais essa necessidade humana, e estendo o raciocínio para concluir que também não terá uma série de outras necessidades, porque seria muito esquisito imaginar uma CEASA ou um sistema de esgoto no Paraíso. Então, já que as pessoas não terão essas necessidades físicas, qual a finalidade de viver eternamente com esse corpo físico? Por que carregar uma carcaça material se você não vai poder usá-la?
O quê? A minha leitora religiosa pensou em “perfeição”? Seria o máximo de perfeição viver para sempre com um corpo físico que nunca morreria, nem sentiria dor, nem nenhuma necessidade física? Será que ela estaria esquecendo dos bebezinhos engatinhando no Paraíso, sem a menor noção de onde estão nem do que está acontecendo, precisando eternamente de alguém para cuidar deles e servindo apenas de enfeites, de bichinhos de estimação? Ou da nossa beata de 96 anos que estaria começando a ter saudade do corpinho que tinha quando jovem, que bem que poderia estar com ela, como aconteceria de estar com as ninfetinhas que ela veria por lá? Isso seria o seu modelo de perfeição? Para mim, seria um modelo de ‘nonsense’. Isso não faz o menor sentido.
Daí  alguém poderia argumentar que o raciocínio estava errado desde o começo: o Paraíso será habitado pelos espíritos apenas, não pelos corpos físicos das pessoas salvas. O Inferno sim, mas aí é porque os condenados precisariam sofrer as torturas eternas que o Todo-Bondoso Deus preparou para eles.
Nesse caso, então, teríamos que o Céu seria habitado apenas por espíritos, certo?… Certo???
Tá. Mas você, por acaso, não estaria esquecendo que os espíritos dos que forem salvos teriam que dividir, assim, o Paraíso com Jesus, Maria, sua mãe, e o profeta Elias, então os únicos com corpos de carne e osso como o meu e o seu? Jesus subiu ao Céu com seu corpo físico e Elias foi arrebatado, tudo segundo a Bíblia; Maria ascendeu ao Céu segundo o dogma católico. E faltou mencionar, claro!, o Espírito Santo que é, logicamente, espírito, e, por fim, Deus, que pode ser matéria e espírito, fazendo a ponte entre esses dois mundos, essas duas dimensões assim criadas: a dos corpóreos e a dos antimatéria. Nossa, que salada!
De um jeito ou de outro, a coisa toda ainda fica com cara de puro ‘nonsense’. E para quem ainda não entendeu, em bom português, ‘nonsense’ é uma estória sem pé nem cabeça!


Depois do Juízo Final, as pessoas ainda terão livre-arbítrio?
Foi por ter livre-arbítrio que Eva resolveu dar ouvidos a Satanás e não a Deus acerca de provar do fruto proibido. Foi por ter livre-arbítrio que Adão resolveu dar ouvidos a Eva e não a Deus sobre o mesmo assunto. Essa desobediência em série deixou Deus tão contrariado que os dois foram expulsos do Éden. Veja você: os primeiros seres humanos, recém-saídos do forno, com o barro ainda quentinho, já usaram a prerrogativa do livre-arbítrio para fazer bobagem, causando problemas a si próprios e deixando Deus estressado. Ele deve ter, já por essa época, visto isso como um mau presságio.
Foi se valendo do livre-arbítrio que os humanos que vieram depois de Adão e Eva cometeram e acumularam tantos pecados que Deus achou por bem recomeçar a humanidade praticamente do zero, e inundou toda a Terra com o dilúvio. Mas não adiantou nada. As pessoas continuaram a usar seu livre-arbítrio para cometerem mais e mais pecados a tal ponto que Deus — já percebendo que teria que continuar, talvez para sempre, com esse negócio de genocídio (o que não seria nada bom para a sua reputação) — acabou por bolar um plano maluco pelo qual, gerando um filho numa mortal para que fosse barbaramente torturado e morto depois que sua paternidade divina fosse revelada, todo mundo tivesse um tipo de salvo-conduto contra despejos e dilúvios até o dia do Juízo Final.
Mas e depois?
Porque, se você pensar direito, um ser humano com livre-arbítrio no Paraíso não seria em nada diferente de um ser humano (ou dois) com livre-arbítrio no Jardim do Éden. Essa concessão divina não deu certo lá, não deu certo na Terra e nada garante que vá dar certo no Paraíso. Será que Deus insistiria em deixar sua obra-prima com esse privilégio e correria o risco de, depois, precisar inundar o Céu, ou fazer um “Juízo Final 2 — A Missão” ?
Então ficamos com isso: ou os habitantes do Paraíso terão ainda a prerrogativa do livre-arbítrio ou não terão.
Se não tiverem, você terá que concordar comigo que o Céu não é lugar para seres humanos; no máximo, versões robotizadas daquilo que nos acostumamos a chamar de pessoas. Se você se considera um dos que serão salvos, o que quer que chegue de você lá para lhe representar como membro da Eternidade, seja o que for essa nova criatura, meu amigo, minha amiga, ela não será você.
Se sim, se todos os salvos que habitarão o Céu puderem decidir o que fazer e o que não fazer, você vai precisar mudar a sua ideia do que seja Paraíso porque, muito provavelmente, será um lugar propenso a conflitos, intrigas, delitos, dissidências e tudo o mais com que estamos acostumados por aqui. E não adianta querer me lembrar que Deus estará no comando porque serei obrigado a lembrá-lo de que ele também estava no comando no Jardim do Éden…
E olha que lá eram só dois para ele tomar conta.


Supõe-se que Deus seja onisciente. Sendo assim, eu posso afirmar que, um segundo antes de ter estalado seus dedos para dar início à Criação, Deus já sabia que tudo daria errado. Ou seja, que Adão e Eva o desobedeceriam no Éden; que toda a raça humana teria a mácula do pecado original; que teria que afogar quase todos os seres vivos da Terra; que precisaria enviar Jesus Cristo para nos absolver do pecado; que haveria um Juízo Final e que uma grande parcela dos seres que ele estava prestes a criar iria sofrer torturas eternas no Inferno. E mesmo assim ele continuou. Estalou seus dedos divinos e deu início ao processo.
Se eu soubesse que algo que fosse fazer não iria dar certo e o fizesse assim mesmo, aposto que você poria a culpa em mim pela minha obra mal feita, não na obra em si. Por que ninguém aplica o mesmo princípio a Deus? Ora, porque ele nos deu livre-arbítrio. A culpa não é dele pela coisa toda ter desandado.
Discordo desse raciocínio. Ele sabia que sua obra iria incluir um Juízo Final e que pessoas iriam para o Inferno; e se iriam para o Inferno por causa do livre-arbítrio ou o que quer que fosse, ele também saberia o motivo. O fato é que ele não se importou com isso. Criou tudo assim mesmo.
Já  me lançaram o contra-argumento de que se eu for para o Inferno será  porque eu “quero”, pois, para ser salvo, bastaria “aceitar Jesus Cristo”. Simples assim. Mas não é essa a essência da minha proposição inicial. O que estou querendo que você entenda é que, independente de A ou B aceitar ou não Jesus e, devido à sua decisão, ir para o Céu ou para o Inferno, consumado o Juízo Final, pessoas serão salvas e pessoas irão para o Inferno. Meu argumento é o de que Deus sabia disso e não viu nenhum problema.
Como se ele tivesse pensado:
É… no fim das contas, só as Testemunhas de Jeová habitarão comigo o Paraíso pós-Juízo Final. Tudo o mais vai ter que ir pro incinerador… Mas que se dane! Lá vai.
– Pluft!
Então eu só poderia concluir que Deus estava interessado apenas na parcela de sua obra que seria salva. Ele criava uma coisa que sabia que iria se estragar em parte, mas dava-se por satisfeito com a parte que poderia aproveitar. E Deus moraria com eles no Paraíso pela Eternidade. Gente escolhida a dedo, que o amou, que dispôs do livre-arbítrio para seguir seus mandamentos. Ou seja, gente de confiança. Enfim, companhia.
Gênesis, capítulo 1, versículo 0:
“Deus, de saco cheio de sua completude, da vacuidade do Nada e de não ter o que fazer nem com quem conversar, resolveu acabar com sua solidão.”

Imagine que tudo já foi consumado e você foi salvo. Meus parabéns! Bem-vindo à Vida Eterna.
Mas e agora? O que você acha que fará no Paraíso?
Se você me disser que vai passar toda a Eternidade com a bunda numa nuvem tocando harpa para Deus, eu lhe asseguro que, talvez muito antes de passar o primeiro bilhão de anos, você irá se pegar pensando algo como: “O que será que as pessoas estão fazendo no Inferno…?”
Se os religiosos supõem que os que forem salvos estarão vivos na Eternidade, é de se esperar que eles “façam” alguma coisa lá para que possam receber o adjetivo de “vivos”. E se eles ainda conservarem seus cérebros humanos, mesmo que numa versão atualizada do software, devo supor que essa alguma coisa deva ser “prazerosa”. Então, o que essas pessoas terão para fazer durante toda a Eternidade? para ocuparem suas mentes, suas vidas? num lugar onde tudo será perfeito, sem necessidades, sem desafios, sem preocupações, sem problemas?
Eu não sei. E você, religioso ou não, também não sabe, como também não sabiam nenhum dos autores do livro sagrado dos cristãos. Por isso que tavez você só encontre na Bíblia referências ao Paraíso e à Vida Eterna na mesma configuração que o Chapeleiro Louco apresentou sua condição à Alice, ou do modo como uma leitora comentou um texto meu publicado na semana passada em que dizia que com os salvos seria assim, e com os condenados seria assado (eita! meu primeiro trocadilho): algo estático, que só faz o mínimo de sentido enquanto ninguém resolver pensar a respeito.
Paulo, em II Coríntios, começou de forma bastante interessante o capítulo 12 prometendo que iria passar a discorrer sobre “visões” e sobre “revelações” do Senhor acerca de um homem (supõe-se que estivesse falando dele mesmo) que fora arrebatado ao Paraíso, mas, talvez tendo esbarrado naquelas mesmas perguntas e concluído que não conseguiria inventar nenhuma resposta satisfatória que não estragasse seus textos, esperou apenas 3 versículos para dizer que não era lícito contar tais coisas ao homem (12:1-4). E a história seguiu por outro caminho. Alguém aí lembrou-se de Alice de novo?
Mas é fácil entender por que não podemos lidar com a Eternidade. Nossos cérebros, pelo pouco que o conhecemos hoje, evoluíram para “funcionar” em função do tempo. Praticamente tudo o que fazemos tem uma data para começar e uma expectativa de fim. Mesmo que não demos conta disso, o nosso cérebro trabalha com um “relógio interno”, igualzinho aos computadores, e todos têm a mesma frequência, já que a expectativa de vida humana, na melhor das hipóteses, gira em torno de um século. As nossas ações são cronometradas por esse “clock”.
Se eu estou estudando russo uma hora por dia durante cinco dias por semana, meu cérebro projeta uma estimativa de que eu atinja um nível intermediário no domínio desse idioma para daqui a, digamos, três anos, com uma possível data para terminar meu curso para daqui a, espero, seis anos. Caso eu quisesse antecipar minha viagem à Rússia em pouco mais de uma década, precisaria estar falando russo dentro de quatro anos, o que me obrigaria a aumentar meu ritmo de estudo. Isso tudo porque sei que tenho menos de um século de vida. Mas se eu disser para o meu cérebro que eu disponho de toda a Eternidade para aprender, ele não vai saber o que fazer: estudar russo uma hora por dia, ou uma hora a cada trilhão de anos, ou a cada sextilhão de séculos? Na Eternidade, não vai fazer diferença. Mas meu cérebro precisaria de uma resposta antes de começar a tarefa porque é assim que ele trabalha. E como eu não teria, acho que ele iria “travar” exatamente como os computadores travam.
Então, ficamos com isso: não dá para racionalizar o que as pessoas terão para fazer e ocuparem suas “vidas” na Eternidade porque os nossos cérebros não estão “configurados” para trabalhar (mesmo hipoteticamente) com a noção de tempo infinito. E se a gente forçar muito ele vai travar. Já se você disser que a Vida Eterna será uma vida completa em si mesma, perfeita, repleta de glória e exaltação ao Senhor, será o mesmo que não dizer nada; uma tentativa tola e infantil de querer aparentar saber a resposta quando, na verdade, se é tão ignorante quanto qualquer um sobre o assunto. Acho que essa é a maneira que os religiosos encontraram de pular todo o processo de racionalização — que, como vimos, não adiantou nada mesmo nesse caso — para poderem ir, sem demora, para a parte do “Se você não aceitar Jesus, irá para o Inferno”.
Isso só me faz pensar que os escritores sagrados, embora não tendo conseguido responder aquela mesma pergunta sobre o que as pessoas vão ter para fazer na Vida Eterna, pelo menos, encontraram uma maneira bem eficaz de fazer seus leitores acreditarem nela assim mesmo: a coação.
Assim sendo, você pode, como eu, ignorar essa ameaça (também sem fundamento) e entender a Vida Eterna do mesmo modo como você entende o País das Maravilhas de Alice. A outra opção seria acreditar nela porque um livro muito antigo, escrito por várias pessoas que viveram numa época de superstição e ignorância muito maior do que as da nossa, diz que ela existe. Mas você teria que acreditar cegamente nisso, ou seja, sem racionalizar.
Ou isso, ou Ctrl Alt Del.

Na Eternidade, as pessoas lembrarão da sua vida passada? Lembrarão quem foram? Lembrarão da Terra?
Eu digo a você, com toda a sinceridade, que se eu fosse salvo, por melhor que se me apresentasse o Paraíso e por pior que a vida neste planeta, às vezes, pareça ser, eu levaria boas lembranças daqui. Muitas coisas eu faria questão de lembrar, e teria saudade de outras tantas. E acho que o mesmo se aplicaria a você.
Mas será que isso seria assim? Será que seria “permitido”? Será que as pessoas no Paraíso teriam, pelo menos, a memória da vida terrena preservada? Será que poderiam ter saudade de certas coisas, de lembranças boas, de amores adolescentes, de aventuras, de lugares?
Eu também não sei responder essa; nem você sabe, nem o papa, nem ninguém.
Mas ora!, até aqui, nós só podemos dizer que esse processo de racionalização só nos deixou com mais dúvidas — em número e qualidade — do que as que tínhamos inicialmente sem fazer nenhuma pergunta. Só dá para concluirmos que sabemos agora muito menos do que antes, o que não ajuda em nada nem nos leva a lugar algum, certo?
Errado.
Houve um tempo em que as pessoas acreditavam que a Terra era plana — porque parece ser plana — e que era o centro do universo com o Sol e a Lua girando ao redor e as estrelas coladas num teto celestial — porque é assim que parece. Quando o ser humano, por seu próprio esforço e competência, vislumbrou o que estava além das aparências, deparou-se com uma infinidade de outras perguntas.
Uma Terra redonda, infinitesimal, vagando num espaço repleto de outros mundos, outras luas, outros sóis, com uma infinidade de galáxias, acenava com a desconcertante conclusão de que a fração microscópica de conhecimento que ele havia tão trabalhosamente adquirido só serviu para aumentar, na razão inversa, a sua própria noção de quanto era ignorante.
Mas todas essas novas dúvidas trouxeram de bônus uma assombrosa certeza que nenhum cientista, nenhum sábio, nenhum filósofo, nem eu, nem você, nem ninguém jamais deveria pensar em recusar:
Eu sou ignorante acerca de um Universo muito, mas muito maior do que eu imaginava!

“Qual a coisa mais importante da vida? Uma pessoa com fome diria: ‘o alimento’. Uma pessoa com frio diria: ‘o calor’. Com todas as suas necessidades atendidas, o ser humano precisa de algo mais. Os filósofos dizem que precisamos saber quem somos e a razão da nossa existência.” (do livro O Mundo de Sofia)
Mas existe entre nós uma grande parcela de seres humanos que não precisam mais perder tempo com essas filosofias… Eles já têm as respostas. Todas elas. E mesmo se — ou quando — a resposta não parece, efetivamente, uma resposta, ele continuará crendo que ela está ali, no seu livro sagrado, escrito pelo ser supremo que criou tudo: ele pensará que apenas não consegue endentê-la ou identificá-la.
O crente crê. No meu Houaiss (uáis) mastodôntico, a única acepção desse verbo em que ele é plenamente intransitivo está sob a rubrica Religião, com o significado de “ter fé”. Essa intransitividade exclusiva confirma para o crente o que lhe ensinam desde o berço: crer, apenas, basta. Nem mesmo a gramática exige um complemento. Por que, então, pedir explicações?
O crente crê na Vida Eterna. E o verbo transitivo, além do objeto indireto, pede indiretamente uma quantidade infinita de fé. Mas isso ele tem, porque ele quer o Paraíso, embora não entenda nem possa entender o que seja isso. Ele não sabe se haverá, realmente, uma Vida Eterna; por isso ele crê. Crer significa ter fé, e fé significa ser ignorante sobre algo, porque se você não fosse ignorante, se você soubesse, não precisaria acreditar.
Eu poderia escrever que a ignorância é a fonte de todas as perguntas, mas as religiões ensinam que o bom crente é o que acredita sem questionar, e que, quanto mais absurdo for aquilo em que você acredita sem fazer perguntas, mais merecedor da Vida Eterna você será. Um engodo que, segundo Richard Dawkins, é um dos mais devastadores efeitos da religião para o cérebro humano: “ensinar que é uma virtude ficar satisfeito em não entender”.
O crente não entende nem o Paraíso nem a Eternidade, mas quer passar a Eternidade no Paraíso. Ele não sabe se terá livre-arbítrio no Céu, nem se terá necessidades, vontades, desejos; não sabe como será viver lá, o que vai fazer, se será realmente uma “vida”; ele não sabe se será ele mesmo que vai estar lá, se terá memória da vida que passou na Terra, ou se vai precisar passar por uma lavagem cerebral; não sabe se vai viver com seu corpo físico ou apenas em espírio. Nesse caso específico, o livro sagrado fala em corpo glorificado, o que dá no mesmo para mim: não responde nada.
Mas eu sou ateu. Existe um ticket de entrada para o Inferno com meu nome impresso em maiúsculas. Deus sabia disso já um segundo antes de estalar seus dedos mágicos. Ele não deve ter se importado, depois, em escrever nada nesse livro para me responder o que quer que fosse.
Se Deus existe e eu for parar no Inferno, é porque eu sou parte da sua obra que não deu certo. Uma prova viva e incômoda da sua imperfeição e incompetência divinas. Alguém que se atrevesse a dizer tal coisa; alguém que se prestasse a racionalizar algo que deveria ser aceito sem questionamentos e acabasse por concluir que Deus estava mesmo só cansado da solidão; alguém que desconfiasse que Deus, sabendo-se Todo-Poderoso, resolveu criar uma raça terrena de semi-iguais apenas para ter para quem se exibir não mereceria mesmo nenhuma consideração ou idulto.
Fico muito lisonjeado em pensar que, antes do primeiro dia da Criação, antes de detonar o Big Bang, Deus tenha pensado em mim, mesmo que tivesse sido algo como:
Barros, não considero você uma boa companhia nem para um fim de semana, quanto mais para a Eternidade… Você vai para o Inferno.
– Senhor Deus, isso é “queima de arquivo”. Uma atitude típica de um criminoso, ou, ao que parece, de um Deus mesquinho, exibido e incompetente.


Felizmente, para mim, a ameaça divina que paira sobre a minha cabeça me causa tanto terror quanto a ideia de ser mordido por um vampiro. A Eternidade, no Inferno ou no Paraíso, é, assim como Deus, uma invenção humana e só sobrevive por causa da fé, da vontade de querer acreditar.
As pessoas de fé acham que entendem tudo sobre Deus e sobre a Eternidade, mas somente enquanto não fazem (ou enquanto ninguém faz) perguntas a respeito. Porque, então, tudo se apresentaria como um grande absurdo. E quando surgem respostas, ou não respondem nada, ou tornam apenas o absurdo ainda mais evidente.
Para manterem sua fé, as pessoas religiosas precisam, a todo custo, evitar tais ponderações. Por isso a conveniência de acreditar cegamente, e essa cegueira as impede de admitir que o seu Deus, o Paraíso, a Eternidade, anjos, demônios, milagres e tudo o mais, só existem nas páginas de um livro antigo. Mas é graças a essa cegueira intelectual que elas podem continuar acreditando e, em fazendo isso, continuar a manter Deus vivo em suas mentes e em suas vidas, e, com ele, a esperança de viver para sempre num mundo encantado, num País das Maravilhas, numa outra dimensão, repleta de tudo que se possa imaginar de bom e com infinitas possibilidades, desde poderem pisar num chão de nuvem até a chance de terem um leão no jardim para brincar com as crianças.
A alternativa que elas têm ao sonho encantado da Eternidade seria se render à possibilidade sem graça de que um dia, simplesmente, vão deixar de existir.